Trabalhar mais não é igual a trabalhar bem

A realidade do trabalho é hoje muito distinta daquela que marcou as sociedades industriais, tanto nas suas características, perfis e organização, como nas próprias expectativas e vivências quotidianas dos indivíduos. E é justamente nestas diferenças que se encontram algumas questões merecedoras de reflexão.

Para lá das fake news finlandesas, dos comentários nas redes sociais e da brincadeira fácil, sustentados pelo sonho, pelos vistos amplamente partilhado, de trabalhar menos, ou mesmo de não trabalhar (repare-se como, por exemplo, a maioria dos programas de rádio exorta a população a animar-se logo a partir de quarta-feira porque, afinal, o “fim-de-semana está próximo”!), a verdade é que o número de horas de trabalho constitui um tema muito sério, que as sociedades e as políticas vão ter de encarar de forma objectiva, realista e corajosa.

O recurso à história mostra-nos que a relação entre produtividade e horas de trabalho – entendidas como horas de permanência no local de trabalho – tem a marca da industrialização, momento em que família e trabalho se separaram definitivamente, deixando de existir coincidência espácio-temporal entre estas duas esferas, como, tradicionalmente, sucedia no mundo pré-industrial.

No entanto, a realidade do trabalho é hoje muito distinta daquela que marcou as sociedades industriais, tanto nas suas características, perfis e organização, como nas próprias expectativas e vivências quotidianas dos indivíduos. E é justamente nestas diferenças que se encontram algumas questões merecedoras de reflexão.

A primeira dessas questões tem a ver com o próprio conceito de horário de trabalho, cada vez mais falacioso, dado que, como a maior parte de nós seguramente reconhece, o trabalho se tornou muito mais intrusivo – os emails de serviço, os telemóveis de serviço, os grupos de WhatsApp e todo um sem-fim de formas de nos manter sempre “ligados”, converteram num quase-anacronismo o conceito tradicional de horário de trabalho, para um vasto número de trabalhadores, e em diferentes sectores de actividade.

A segunda questão liga-se ao reconhecimento, já desde finais da década de 1970, da necessidade de as organizações perceberem o trabalhador como “pessoa”, o que significa, necessariamente, atender às múltiplas dimensões de que se compõe a existência individual, nas quais se destaca a família, mas de que, igualmente, fazem parte o convívio social, o lazer, o conhecimento ou a aquisição de competências diversas.

A terceira questão prende-se com a própria mudança do ponto de vista demográfico, em que a partilha de trabalho, ou seja, de horário de trabalho, poderá, a prazo, ser a única solução para evitar que uma geração de jovens adultos (crescentemente qualificada) seja totalmente excluída do acesso ao emprego e, ao mesmo tempo, para aproveitar o contributo de experiência e saber de uma geração mais velha que mantém a capacidade, a aptidão e a vontade para o trabalho, concretizando, dessa forma, os propalados desígnios de intergeracionalidade e de envelhecimento activo, colocando-os ao serviço de um desenvolvimento socialmente sustentável.

A quarta questão tem a ver com o tradicional conflito entre a vida profissional e a vida familiar e os papéis associados a estas duas dimensões. Com efeito, a investigação tem demonstrado a existência de um claro interface entre ambas, gerador de um impacto mútuo, que faz com que a satisfação (ou a insatisfação) numa das áreas, naturalmente, “contamine” a outra área. Neste sentido, promover o equilíbrio entre estes domínios é fundamental, tanto para a produtividade e motivação no trabalho, quanto para a percepção de bem-estar, realização e felicidade individual e familiar.

Finalmente, a última questão relaciona-se com dois “mitos” ainda muito presentes na sociedade portuguesa: o primeiro desses “mitos” é o de que os indivíduos só trabalham quando “controlados”, o que não só constitui uma infantilização e desresponsabilização dos trabalhadores, como tende a ter o efeito perverso de incentivar a encontrar formas de escapar ao controlo, “enganando o sistema”.

O segundo “mito” é o de que manter os trabalhadores mais tempo no local de trabalho se traduz em maior produtividade, o que não só não é verdadeiro (e os exemplos à nossa volta provam-no à saciedade), como, pelo contrário, é comum que os horários de trabalho muito prolongados conduzam a fenómenos de aumento do erro e de diminuição da produtividade, justamente porque se dá uma “deslocação” da atenção individual das tarefas e papéis profissionais, para tarefas e papéis situados noutras esferas da vida, designadamente, a esfera familiar.

Considerando todos estes aspectos e acrescentando um outro, de fundamental importância, que é o de a produtividade e a dedicação estarem directamente relacionadas com a motivação e de esta ser, por sua vez, condicionada pela percepção de satisfação e respeito no trabalho e por parte das organizações empregadoras, parece que uma revisão dos (pré)conceitos acerca dos horários de trabalho se constituirá, a cada vez mais breve prazo, como uma inevitabilidade.

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