A violência sobre os profissionais de saúde versus a gestão de expectativas

São muitas vezes estas expectativas goradas que, numa mente menos preparada para a frustração da expectativa, dão o mote ao uso da arma dos fracos, a violência.

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FRANCISCO ROMAO PEREIRA

Numa sociedade inevitavelmente menos diferenciadora, mais inclusiva e participativa, confundem-se amiúde os papéis do médico e do utente/doente, troca-se com leviandade o lado da secretária no gabinete médico e passamos de bestiais a bestas num piscar de olhos. Há muito que o médico, o professor primário e o padre desceram do pedestal. Na maioria dos casos, esta descida permitiu uma maior acessibilidade, disponibilidade de cuidados e uma melhoria na relação médico-utente/doente. Noutros potenciou a banalização desta relação que, por mais próxima que seja, se quer de respeito, confiança e co-responsabilização, factores indispensáveis na aliança terapêutica.

A maior dificuldade que hoje enfrento nesta relação é gerir as expectativas. O doente, frágil e em sofrimento, procura o médico como um salvador, ou o mago que com um “toque de perlimpimpim” e “pós de unicórnio” (palavras da minha filha) cura a dor. Entra no consultório com uma expectativa justa: a cura, o alívio do sofrimento, a compaixão, a juventude, o milagre; mas também espera muitas vezes o formulário, a declaração, a baixa, o atestado, o antibiótico porque sim, a TAC para ver se está tudo bem, as análises a tudo. É por vezes difícil explicar que uma gripe se resolve com o tempo e um chá de limão com mel, que não é preciso antibiótico, e que as TAC se pedem só quando a clínica o justifica. São muitas vezes estas expectativas goradas que, numa mente menos preparada para a frustração da expectativa, dão o mote ao uso da arma dos fracos, a violência.

Sem solução para este problema social, que ultrapassa o sector da saúde, ocorrem-me três medidas que poderiam ajudar a gerir expectativas:

Aposta na literacia em saúde: o utente/doente deve ser informado do seu percurso no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e saber a que serviço recorrer perante a sua situação específica. Ao nível da doença, deve saber identificar uma gripe, os sinais de gravidade e quando deve ou não recorrer aos cuidados de saúde. Importa clarificar o que todos os médicos, e não um em particular, fazem e não fazem, a fim de não se frustrarem expectativas infundadas. O médico de família (MF) e os níveis de prevenção que preconiza assumem aqui um papel preponderante. 

Desburocratização da medicina nos cuidados de saúde primários (CSP): a burocracia diária a que o médico está sujeito consome o seu tempo e o do utente/doente, não favorece a rentabilidade dos recursos e potencia conflitos. Atestado para carta de condução, caçador, declaração para isto e aqueloutro, informação clínica por tudo e por nada. Rentabilize-se a informática e aposte-se num resumo da condição clínica do utente/doente, que lhe seja acessível para apresentar em situações em que é uma exigência. Permita-se ao doente justificar faltas por doença por tempo limitado. Acabe-se com renovações de baixas de 30 em 30 dias para condições oncológicas graves ou doenças que anunciem ausência prolongada.

A aposta nos CSP para fomentar a proximidade médico-utente/doente: urge apostar nos CSP, na requalificação de recursos físicos e na garantia de recursos humanos. A aposta no modelo Unidade de Saúde Familiar, melhorando a acessibilidade e disponibilidade de cuidados, é urgente e permitirá diminuir a assimetria nos cuidados prestados. A redução das listas de utentes dos MF permitirá mais tempo para ouvir o doente. Melhore-se a interacção entre CSP e hospital.

Tantas ideias que não são novas e poderiam ajudar a amenizar conflitos. Aos fracos que usam a violência como arma, espero que seja aplicada uma pena que os faça reflectir.

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