EUA-Irão: a dissuasão credível

A decisão da Administração Trump de eliminar o general iraniano Qassem Soleimani suscitou uma onda de críticas que não só ignora o devido enquadramento histórico, como se recusa a compreender que vivemos num mundo de Ares e não de Afrodite.

O filme Munique, de Steven Spielberg, ajuda-nos a compreender o conceito de Dissuasão. Ele retrata o atentado levado a cabo por um grupo palestiniano contra a equipa de Israel durante os Jogos Olímpicos de 1972, que matou 11 atletas, e a subsequente missão montada pela Mossad para eliminar 11 elementos envolvidos no ataque. Tudo parece correr como planeado. Um a um, os alvos identificados vão sendo liquidados. Porém, o enredo complica-se quando começam a aparecer mortos alguns membros da operação. Confrontado com este desenvolvimento, um dos operacionais dos serviços secretos israelitas diz de forma lapidar: agora já estamos a comunicar.

As chamadas teorias da dissuasão são um dos campos de estudo mais populares nos Estados Unidos no domínio das relações internacionais. Estas estão diretamente associadas ao advento das armas nucleares, mas não se esgotam aí. Na sua forma mais geral, como defendem Alexander L. George e Richard Smoke, “a dissuasão é simplesmente a convicção do nosso adversário de que os custos e/ou riscos de determinada ação que ele empreender suplantam os seus benefícios”. Já Henry Kissinger, escreveu que “a dissuasão requer uma combinação de poder e vontade para o usar, mas também a sua valorização por parte do potencial agressor”. Numa linguagem mais simples, podemos defini-la como uma combinação de “pau e cenoura”.

A decisão da Administração Trump de eliminar o general iraniano Qassem Soleimani suscitou uma onda de críticas que não só ignora o devido enquadramento histórico, como se recusa a compreender que vivemos num mundo de Ares e não de Afrodite. Goste-se, ou não, da opção tomada pelo Governo norte-americano ela tem racionalidade: trata-se de restabelecer uma “dissuasão credível”.

Deixando de lado as análises simplistas, e com muito pouco sentido, que remetem para a imprevisibilidade e inconsistência de Donald Trump (crítica que desconhece como funciona o gabinete de crise na Casa Branca e o processo de tomada de decisão em política externa na América), ou para o primado dos motivos internos por estar a decorrer um processo de destituição e haver eleições presidenciais em novembro (crítica que desconhece a impopularidade que goza hoje o envolvimento norte-americano no Médio Oriente e ignora o facto de Trump – bem como Obama – ter sido eleito para retirar o país das guerras periféricas na região), podemos identificar neste caso a existência de uma estratégia de dissuasão a três níveis.

O primeiro tem a ver com o referido enquadramento histórico. Uma pessoa que não soubesse nada sobre o assunto e começasse a acompanhá-lo através dos media apenas desde 3 de janeiro ia pensar que nesse dia o Presidente dos EUA decidiu mandar matar uma alta figura militar de outro Estado só porque lhe apeteceu. Ora, a decisão surgiu como resposta a um conjunto de provocações levadas a cabo por parte do Irão e destinou-se a deixar claro a Teerão que tal comportamento acarreta punições severas, dissuadindo assim a continuação desta linha ofensiva. Aqui ficam alguns exemplos significativos: ataques a petroleiros no Golfo Pérsico, derrube de um drone norte-americano, bombardeamento das instalações da petrolífera Aramco na Arábia Saudita, ataque a uma base militar no Iraque, invasão da embaixada dos Estados Unidos em Bagdade. A tudo isto, há a somar o crescente apoio aos houthis no Iémen e a Bashar al-Assad na Síria.

O segundo tem a ver com a distribuição de poder no Médio Oriente. Os EUA identificaram há vários anos como prioridade estratégica na região travar a ascensão do Irão, vista como uma ameaça à sua segurança e à existência dos seus principais aliados regionais. Não oferece grande controvérsia a afirmação de que Teerão está a criar uma “grande zona de influência” que vai da sua fronteira com o Afeganistão até ao Mediterrâneo, passando pelo extremo sudoeste da Península Arábica, estendendo-se a países como o Iraque, a Síria, o Líbano e o Iémen. Acresce que os iranianos têm uma antiga pretensão de se tornarem uma potência nuclear, já não estando muito longe de conseguir concretizar esse seu sonho. Ora, da perspetiva da Administração Trump, só uma dissuasão credível pode impedir o Irão de continuar a aumentar o seu poder e influência a nível regional, bem como de adquirir armas nucleares.

O terceiro nível tem a ver com o sistema de alianças no Médio Oriente. A combinação da ascensão iraniana, e da sua pressão ofensiva, com o retraimento estratégico dos Estados Unidos na região suscitou dúvidas legítimas em países como Israel e a Arábia Saudita sobre o compromisso norte-americano com a sua segurança e defesa. De forma mais dramática, estes desenvolvimentos conjugados levaram mesmo à aproximação da Turquia à Rússia e à procura pela primeira de um modus vivendi com o Irão. Para a América, é essencial dissuadir Teerão de colocar em causa a segurança dos seus aliados regionais, desde logo os israelitas e os sauditas, bem como impedir qualquer reconfiguração diplomática no Médio Oriente, visível no já referido exemplo turco, ou na crescente influência russa no Egipto.

Se se confirmar o pressuposto fundamental das teorias da dissuasão, que consiste na racionalidade dos decisores, o restabelecimento de uma “dissuasão credível” levará a prazo os EUA e o Irão à mesa de negociações. Este é, aliás, o objetivo assumido por Trump no famoso tweet sobre a incapacidade dos iranianos de vencerem guerras e o seu talento para negociar. Bom, como diria um dos operacionais da operação de retaliação contra o atentado nos Jogos Olímpicos de Munique no filme de Spielberg, pelo menos agora já estão a comunicar.

Professor associado da Universidade Nova; investigador integrado do IPRI 

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