Regionalização administrativa ou regionalização inteligente?

Numa conjuntura global marcada por grandes transições – ecológica, demográfica, digital, migrações –, nenhuma área da sociedade ficará imune a uma transformação de grande alcance e impacto.

Em artigos anteriores do PÚBLICO (25.10.2017, 07.03.2018, 28-01.2019) já escrevi sobre as relações convencionais e o nexo de causalidade entre regionalização e descentralização. Desta vez, sou, porventura, um pouco mais atrevido e coloco em confronto as várias hipóteses em presença, na linha de uma regionalização mais inteligente e menos convencional ou administrativa.

  1. Autonomismo, separatismo e independentismo regionalistas

As regiões autónomas da Madeira e do Açores não servem de exemplo para a regionalização do continente. As condições especiais de insularidade das nossas ilhas justificam a concessão desse estatuto autonómico. Este facto não invalida, evidentemente, que haja muitas lições a retirar dos dois regimes de autonomia. Por outro lado, o compromisso político conseguido nas ilhas tem sido suficiente para impedir o crescimento do separatismo e independentismo regionalistas.

  1. A regionalização administrativa, o princípio das cinco regiões-plano

No ranking político-administrativo segue-se a região administrativa do continente, dotada de atribuições, competências e meios financeiros tal como está previsto na constituição da república. Neste caso, a nossa eventual região administrativa tem um lastro histórico conhecido uma vez que remonta ao campo de intervenção das antigas regiões-plano, hoje as atuais Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, (CCDR), elas também coincidentes com as designadas unidades estatísticas territoriais da União Europeias (o nível NUTS II). Todavia, como sabemos, o referendo de 1998 impediu que a regionalização administrativa tivesse lugar e as CCDR atuais são meros organismos desconcentrados da administração central do Estado.

  1. A regionalização minimalista, a eleição do presidente das CCDR

Não sendo autonómica nem administrativa, o nível NUTS II seria, neste caso, considerado a sede apropriada para uma nova centralidade, racionalidade e governabilidade territoriais, em particular, através da conversão da CCDR num Conselho Executivo Regional e numa nova arquitetura para os serviços regionais. Esta é uma proposta minimalista que assenta numa forma de legitimidade funcional já existente (CCDR), mas que pode, ainda, assentar em procedimentos mais vinculativos de legitimidade política, como é a eleição indireta do presidente do conselho executivo em colégio eleitoral regional ou a sua eleição em sufrágio universal regional.

  1. A coreografia CIM, o minifúndio institucional aumentado das autarquias

Descemos até ao nível NUTS III, o nível das Comunidades Intermunicipais (CIM). Estou convencido de que os Planos de Ação Regional (PAR) do nível NUTS II, depois de devidamente revistos, são uma plataforma adequada para fazer a arbitragem regional entre níveis de governo e administração e aprofundar as funcionalidades da “regionalização administrativa minimalista”. É certo que existe o risco real de que o governo central use a administração regional como instrumento direto de ação política, uma espécie de guarda avançada das suas políticas de racionalização e ajustamento financeiro e, por outro, que a administração local use as associações de municípios e, agora, as comunidades intermunicipais como guardas avançados e projeção da sua legitimidade e especificidade local, intermunicipal e sub-regional.

Se este risco se confirmar, os níveis NUTS II e NUTS III poderão ser transformados numa arena de verdadeira cacofonia territorial, onde freguesias, uniões de freguesias, associação nacional de freguesias, municípios, associações de municípios, comunidades intermunicipais, associação nacional de municípios e administração regional irão esgrimir argumentos cruzados em nome dos únicos atores verdadeiramente legitimados, os municípios e o governo central.

  1. A cidade distrital inteligente

Continuamos a descer no ranking administrativo. Imagine-se, por exemplo, o distrito de Beja, com 14 concelhos e 153 mil habitantes segundo o censo de 2011. De acordo com o conceito de “cidade distrital inteligente”, seria constituída uma “plataforma de cidadania interativa” com o propósito de selecionar os “bens comuns distritais” que deveriam ser colocados ao serviço de toda a população do distrito, uma cidade-rede com 153 mil habitantes. De acordo com este novo elenco de prioridades, a “comunidade de autogoverno distrital” que, neste caso, coincide com o território da Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo (CIMBAL), debateria a natureza, os conteúdos e os limites do “centro partilhado de recursos digitais”, tendo em vista apetrechar o distrito com as “infraestruturas de conexão” que viabilizam os novos serviços digitais, assim como o modelo operacional e logístico que colocaria os bens comuns ao serviço da população do distrito.

As “cidades distritais inteligentes” do interior de Portugal teriam, assim, uma dimensão média mais elevada, recriariam a sua área de influência e o seu poder de aglomeração e essa circunstância seria uma oportunidade única de colocar à sua disposição serviços comuns com um nível, uma eficácia e eficiência muito superiores. Estaríamos, assim, a eleger a “capital do distrito” como a sede de serviços comuns, partilhados e universais acessíveis a todos os cidadãos.

  1. A transformação digital do Estado-silo em Estado-plataforma

Outra reforma estrutural da maior importância diz respeito à transformação digital do Estado-silo em Estado-plataforma. O modelo silo criou territórios-zona e gavetas orçamentais para administrar áreas e atividades de natureza clientelar e corporativa. A equipa ministerial é a cúpula desse modelo silo e a sua legitimidade alimenta-se dessa provisão clientelar. Em cada área governativa forma-se uma cadeia de valor com várias intermediações onde se acomodam os agentes facilitadores e as estruturas de concertação e negociação. Ninguém parece estar muito preocupado com as ineficiências internas que se geram nas zonas de interface entre áreas de atividade, uma vez que as externalidades negativas são geralmente cobertas e socializadas pelo contribuinte.

Não tenhamos ilusões, num país onde geralmente se confunde uma política pública com a publicação de um diploma legal, não é tarefa fácil montar um estaleiro de pequenos núcleos inovadores no interior da administração pública em estreita ligação com centros de investigação e outras start up e, a partir daí, gerar um movimento de reforma da nossa administração pública. Entretanto, a alternativa mais conveniente está sempre à espreita, chama-se modernização e negócio informático, necessários, é certo, mas que não se confundem com cultura colaborativa e Estado-plataforma. No nosso caso o principal estrangulamento ao patrocínio adequado deste novo universo de núcleos inovadores e start-up é o “modelo silo” completamente ultrapassado das nossas principais instituições, totalmente viciadas em candidaturas e ajudas públicas para preencher a sua missão clientelar e corporativa.

  1. A reforma estrutural da administração central do Estado

No momento em que se procede a uma revisão das atribuições e competências das administrações local, supramunicipal e regional, julgo que se perde uma oportunidade única de fazer a reforma estrutural da administração central do Estado, no âmbito do próximo período de programação e numa conjuntura em que estamos obrigados a regressar ao investimento público em infraestruturas e equipamentos para a próxima geração digital. A reforma estrutural da administração central do Estado visa, justamente, reduzir substancialmente o “partido-estado” e a constelação de interesses e poderes que rodearam o Estado durante os últimos quarenta e cinco anos. Aqui, o imperativo categórico reporta-se às grandes funções do Estado, a saber:

  • O Estado soberano: rever as missões de soberania e a estrutura de poderes soberanos,
  • O Estado social: rever os regimes de proteção social na sua aceção mais ampla,
  • O Estado fiscal: rever a estrutura dos benefícios e estímulos fiscais,
  • O Estado empresarial: rever o programa de PPP e os limites do “perímetro empresarial”,
  • O Estado administrativo: reformar a administração autónoma e o Estado Local,
  • O Estado financeiro: constitucionalizar a responsabilidade fiscal e financeira do Estado.

Oxalá o crescimento económico ajude, não obstante o paradoxo bem português de que um crescimento mais elevado possa abrandar ou mesmo adiar a reforma do Estado. O “partido-estado” não vai desistir assim tão facilmente.

  1. Uma proposta alternativa de regionalização inteligente

Eu costumo dizer que, nesta matéria, “o modo de olhar para o problema é uma parte importante do problema”. Num país tão pequeno como Portugal, tão bem servido de autoestradas e serviços de comunicação, o núcleo base da proposta de descentralização não pode ser, não deve ser, uma proposta de divisão administrativa, mas, antes, um pacote inovador e inteligente de serviços comuns e partilhados acessíveis a todos os cidadãos. Refiro-me ao pacote constituído por medidas integradas de vários programas: o programa de envelhecimento ativo para a sociedade sénior, o programa de descarbonização e economia circular, o programa de literacia e infraestruturação digital do território, o programa de lojas do cidadão nas capitais de distrito, a criação em cada distrito de uma escola tecnológica e digital, a eliminação das portagens e um programa de incentivos fiscais e financeiros para a valorização do interior, um programa de estímulos para a criação empresarial, as artes e a cultura. Depois de estabelecido um rationale de conjunto para esta nova cultura colaborativa e partilhada, discutiríamos, então, quais os territórios-rede e os atores-rede mais apropriados para o efeito.

Notas Finais

Numa conjuntura global marcada por grandes transições – ecológica, demográfica, digital, migrações – nenhuma área da sociedade ficará imune a uma transformação de grande alcance e impacto. No caso da organização “Estado-administração” sabemos que não há, por enquanto, pensamento estruturado ou um guião para a ação, nem sabemos mesmo se essa vontade existe no interior do Estado-administração ao mais alto nível, não obstante existir, em Portugal, um ministro com competência na área da modernização administrativa.

Sabemos que há um grande passivo acumulado, pois nos últimos 30 anos usámos com frequência serviços em regime de outsourcing que, gradualmente, desclassificaram os serviços do Estado-administração e os perfis profissionais da função pública. Sabemos que uma função pública envelhecida, com as carreiras e as remunerações congeladas há uma década, conservadora em matéria de avaliação e direitos adquiridos, significa, muito provavelmente, que não estão reunidas as condições para acolher uma nova cultura organizacional que põe em causa a lógica dos direitos adquiridos e a segurança das carreiras da função pública.

Sabemos que o negócio informático leva vantagem, sob a forma de concursos e mercados públicos, e que a inovação incremental e a obsolescência programada que lhe estão associadas são um excelente negócio para a clientela informática do Estado-administração. Sabemos, ainda, que uma nova cultura organizacional baseada em “plataformas colaborativas com a multidão” põe em causa não apenas as missões clássicas do Estado-administração como, também, o próprio perímetro da ação administrativa do Estado e, ainda, a própria noção de “função pública” tal como elas são convencionalmente conduzidas e reproduzidas no modelo silo, para além de implicar muito mais investimento na cobertura digital do território. Reporto-me a questões de cultura digital que implicam a coprodução de “serviços ao público” em vez de serviços públicos. Esta transição da cultura informática para a cultura digital é plena de consequências sobre o sistema de educação em geral, mas precisa de ser assumida com rigor e frontalidade.

Por outro lado, no plano territorial, o país tem comunidades intermunicipais, institutos politécnicos e universidades e associações empresariais que precisam urgentemente de fazer prova de vida. A triangulação entre estas três entidades pode e deve estar na origem de um “contrato de desenvolvimento” para as CIM para o próximo período de programação 2020-2030. Para levar a cabo este projeto de desenvolvimento seria criada uma “estrutura de missão” ou ator-rede com competências executivas no território da CIM/NUTS III. Neste contexto, o nível CCDR/NUTS II seria considerado a sede apropriada para uma nova governação territorial, em particular, através da formação de um Conselho Executivo Regional assente numa nova arquitetura para os serviços regionais. Um Conselho de Concertação Regional completaria este quadro de governação territorial.

Doravante, tudo estará ligado por via de ambientes inteligentes. A dicotomia urbano-rural estará ultrapassada e a “smartificação” do território abrangerá todas as categorias territoriais. Os territórios do futuro nascerão numa maternidade online e depois as plataformas colaborativas discutirão qual a arquitetura e engenharia social aplicáveis. Quero crer, por isso, que a evolução mais inovadora acontecerá na área da “smartificação” do território, que combinará a nova geração de utilities da smart city com uma grande variedade de plataformas tecnológicas e funcionalidades da sociedade digital colaborativa.

Em síntese, tecnologias da informação e comunicação (TIC) e territórios inteligentes e criativos (TIC), ou seja, das TIC aos TIC, eis a equação do futuro que compreenderá, como vimos, uma nova semântica e gramática discursivas: ecossistemas inteligentes de acolhimento, centros partilhados de recursos digitais, territórios-rede e atores-rede, utilities digitais e capitalismo popular de pequenas plataformas, redes distribuídas, quarto setor, governo dos comuns e comunidades de autogoverno. É, sem qualquer dúvida, uma grande promessa de futuro em direção a uma regionalização inteligente.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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