Abriu a época da caça ao médico?

Por detrás deste estado de coisas estão décadas de insuficiência política para gerir a saúde dos portugueses.

As recentes ocorrências, que se sucederam a um ritmo alucinante, de agressões físicas graves sobre médicos no exercício da sua actividade profissional, têm de ser encaradas com toda a seriedade e os seus responsáveis directos e indirectos não podem passar impunes. Sobretudo porque não se tratam de acidentes isolados, mas de uma escalada de violência que passa por agressões psicológicas, verbais e físicas cada vez mais severas, e que diariamente têm lugar nas urgências, enfermarias e centros de saúde por todo o país, e que têm como vítimas os profissionais de saúde.

Em primeiro lugar os agressores têm de ser levados à justiça e punidos. As medidas terão de ser duras e dissuasoras, para que entendam que este comportamento não é permitido e poderá passar pela obrigatoriedade de, ao precisarem de recorrer a um estabelecimento público de saúde, terem de ser acompanhados por agente da autoridade.

Mas por detrás deste estado de coisas estão décadas de insuficiência política para gerir a saúde dos portugueses. Incapazes de desenvolverem a literacia da saúde dos cidadãos, sem conseguir criar redes confiáveis de atendimento sequencial, com suficientes médicos de família e horários diversificados para responderem aos problemas reais dos doentes, os governantes puseram as fichas todas numa urgencialização da medicina pública. Esta política, que procura esconder a ausência de uma resposta estruturada fluindo dos cuidados primários aos hospitalares, tenta satisfazer (mal) as necessidades imediatas da população, abrindo as portas das urgências, tanto para o grave como para o ridículo, sem qualquer limitação. Se falam tanto do Sistema Nacional de Saúde britânico como fonte de inspiração para o português, pusessem ao menos os olhos na sua organização compartimentada.

Esta (des)organização tinha tudo para correr mal e efectivamente desabou quando nos últimos tempos o controle financeiro falou mais alto e impôs limites a esta política de urgências em primeiro lugar sem, contudo, haver a vontade e coragem de a reformar.

E o que se viu, de Vítor Gaspar a Mário Centeno, foi só cortes: nos ordenados e nas carreiras médicas, nas horas extraordinárias e nas contratações; aumentos, só nos impostos, o que levou a reduzir o número de médicos disponíveis para tão duras tarefas, causando enormes constrangimentos no funcionamento das urgências, que continuaram, para uma capacidade de resposta bem mais diminuída, a ser de porta escancaradamente aberta.

Ou seja em segundo lugar são, pois, políticos e governantes os responsáveis indirectos, por (muita) omissão e (pouca) acção, deste caos e do enorme ressentimento da população contra os médicos e outros profissionais de saúde, que os primeiros nunca se preocuparam em defender.

Mas finalmente, com responsabilidade directa e indirecta clara neste incidente estão os Conselhos de Administração (CA) dos locais onde ocorre esta violência e muito particularmente, nestes casos, o do Hospital de Setúbal, que perante o caso inicial terá dito que “no exercício das funções da prestação de cuidados aos utentes os profissionais de saúde estão sujeitos a riscos que tentamos minimizar”.

Ora tendo uma responsabilidade directa de garantirem a segurança de quem trabalha no seu hospital, têm também indirectamente o ónus de não perceberem ou quererem perceber que têm essa responsabilidade.

Se os médicos estão sujeitos a riscos com a sua segurança, como o CA só os tenta “minimizar” então o que devem fazer para se protegerem: Contratarem seguranças privados? Atenderem os doentes através de frinchas nos gabinetes?

Num país que se prezasse este CA seria, no próprio dia de tão triste comunicado, demitido pela tutela. A tibieza e ambiguidade da sua resposta patrocinou indirectamente nova dupla agressão alguns dias depois. Pela gravidade e recorrência dos factos caberá aos médicos que aí trabalham, não o fazerem, até esse distraído CA tomar medidas que superem essa” minimização” dos riscos.

É verdade que a resposta do Ministério da Saúde, também não encoraja o zelo securitário dos CA das unidades de saúde. Meia dúzia de linhas anémicas, escondidas no Portal da Saúde, porventura escritas por algum jovem assessor a quem perturbaram o descanso do fim-de-semana, comentam o facto com a mesma intensidade com que se condena um roubo de papel da fotocopiadora da urgência. Do papel dos Conselhos de Administração para protecção dos seus funcionários, nem uma palavra.

Pergunto-me o que diria o ministro Centeno, se os funcionários da Administração Tributária começassem a ser espancados nas suas repartições, por uma população impaciente. Talvez agora que o assunto foi inevitavelmente mediatizado, e como tal politizado, haja uma resposta mais estridente do ministério e promessas de garantia da segurança dos profissionais, por CA dispostos a serem menos minimalistas na avaliação dos riscos. Depois, e como sempre, tudo será esquecido.

Trabalha-se na corda bamba, horas e horas a fio, muitas vezes isolados em espaços completamente abertos e desprotegidos, com programas informáticos que raramente não estão enguiçados, sem tempo nem espaço para atendimento, mal remunerados, com uma responsabilidade individual imensa.

Agora os médicos temem diariamente pela sua integridade física. Há limites. Os médicos exigem respeito e segurança, e não podem aceitar serem as vítimas a imolar, pagando por décadas de erros da política de programação da saúde e pelo desinteresse de Conselhos de Administração timoratos.

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