Cuidemos da recém-nascida

Com a nova Lei de Bases da Saúde em vigor, torna-se urgente termos um novo Estatuto do Serviço Nacional da Saúde.

Estando cumpridas todas as formalidades – discussão pública, discussão e votação parlamentar, promulgação pelo Presidente da República, publicação em Diário da República, entrada em vigor a 3 de Novembro , estão criadas todas as condições para regulamentar o que na Lei de Bases da Saúde (LBS) exige ser regulamentado. O Estatuto do Serviço Nacional da Saúde (ESNS) está entre essas matérias. Sem ele, aquela lei torna-se num instrumento politicamente frágil, à mercê de decisões avulsas, aplicadas para satisfazerem a agenda do dia.

Um conjunto de intervenções aplicadas em ambiente casuístico, por mais bem-intencionadas que sejam, só por acaso conseguirá satisfazer os propósitos visados. Falta-lhes o enquadramento organizacional e o sistema de relações funcionais que o ESNS deve permitir estabelecer de maneira a tornar o SNS uma entidade multivariada, no sentido de que utiliza toda a sua capacidade e competência com o mínimo de atrasos, duplicações e redundâncias. O ESNS há-de servir para estabelecer o melhor roteiro para que o SNS cumpra a sua missão. Essa é a pertinência do ESNS. Se não for esta a utilidade dada àquela lei, então estaremos perante um exercício que valeu a pena, mas exclusivamente pelo seu lado retórico.

Agora que está em vigor, e em que as disputas em torno da LBS ficaram para trás, torna-se necessário afirmar e defender que era mesmo necessário proceder à revisão da lei de 1990. Entre as duas as diferenças são notórias e os propósitos são distintos. Basta compará-las para se detectar facilmente o que estava em jogo – a natureza da política de saúde e a relação público/privado. Se foi possível fazer aprovar a LBS depois de muitos meses de discussão pública e de debates parlamentares foi porque existia um contexto político único, que acabou por facilitar a obtenção de um resultado útil mas que esteve sempre rodeado de muitas incertezas. Imagine-se o que seria se se tivesse deixado para a actual legislatura a revisão da lei de 1990.

Para sustentar a urgência da elaboração do ESNS, lembremos a argumentação desenvolvida por alguns sectores a propósito da LBS: que o SNS funcionou sempre com a cobertura daquela legislação, que não seria a LBS que iria melhorar os défices que o SNS de há muito apresentava. Vejamos, não foi a Constituição da República que repôs formalmente a democracia em Portugal, foi a cobertura que ela deu para que as medidas políticas entretanto desenvolvidas e aplicadas concretizassem o espírito e a letra do que nela ficou inscrito, em resultado da situação revolucionária vivida em 1974 e 1975.

Sobre este assunto podemos estar a ser injustos para com a equipa ministerial. Desconhecemos se o ESNS já está a ser equacionado ou mesmo se o trabalho já vai adiantado. Se for o caso, só temos de congratular a ministra e os seus secretários de Estado. Significa que estão empenhados não só em gerir a agenda do dia mas que meteram mãos à construção de uma peça jurídica indispensável para o bom funcionamento do SNS.

Embora tenham de ser necessariamente resolvidas, as disfunções que constantemente são tornadas públicas não podem ocupar toda a actividade governativa. É que se o funcionamento do SNS apresenta as brechas de todos conhecidas, é também porque as sucessivas equipas ministeriais, ao fim de poucas semanas, se perderam no trânsito do dia, sem tempo para desenvolver pensamento estratégico. Agora que iniciou funções, não é isso que se espera da actual equipa ministerial. Espera-se que se dedique à política de saúde, no sentido de apresentar soluções suficientemente estruturadas para que em 2023 a saúde dos portugueses apresente progressos naquilo que conta e que está bem ilustrado na LBS. Mas para isso é urgente termos um ESNS. E não é um Estatuto qualquer, é um Estatuto em que a bota bata com a perdigota.

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