30 x 2019

Mataram-nas porque eram mulheres e queriam ser pessoas, simplesmente pessoas, que escolhem, que amam, que se enganam, que recomeçam, que vivem.

Trinta mulheres assassinadas, em apenas um ano. E o número abala-nos, num estremecimento incomodado. Trinta mulheres que morreram em casa, nesse espaço que deveria ser protector. Ou que morreram na família, onde deveriam ser felizes. Que morreram em nome do fim daquilo que lhes juraram ser amor. Ou que morreram à frente dos filhos, o que significará, talvez, morrer duas vezes.

Mulheres que morreram porque as mataram. E mataram-nas porque eram mulheres e, por isso, pertenciam a um homem. Mataram-nas aos poucos, devagar, enquanto lhe pertenciam, a esse homem. Mataram-nas por entre juras de amor e promessas de nunca mais. Mataram-nas com palavras, com bofetadas e murros, com o sexo a que as forçaram.

Mataram-nas, ameaçando-as com a exposição pública da sua intimidade, ou com os filhos que não tornariam a ver. Mataram-nas, isolando-as, insultando-as, desfigurando-as, humilhando-as.

Mas mataram-nas, também, em cada uma das queixas que apresentaram às autoridades (até deixarem de as apresentar), ou no momento em que as sentenças se ditaram nos tribunais. Mataram-nas nas respostas de protecção e apoio que não existiam, ou que, a existirem, as obrigavam a mais isolamento e a uma vida na clandestinidade, escondidas do mundo, para se esconderem do Mal.

Mataram-nas nos detalhes indignos das notícias de jornal; no voyeurismo macabro dos canais de televisão; nos comentários especializados e compungidos; nas promessas de soluções, resoluções e medidas, que “estão a ser estudadas e irão ser implementadas” (que num futuro – mas quando? - irão ser implementadas).

Mataram-nas porque eram mulheres e queriam ser pessoas, simplesmente pessoas, que escolhem, que amam, que se enganam, que recomeçam, que vivem.

Pessoas livres, apenas, como sempre lhes ensinaram que seriam. Como sempre lhes juraram que eram. E, no entanto, talvez as tenham enganado, talvez tenham enganado tantas de nós…

Tantas mulheres que, afinal, não podem escolher, nem amar, nem enganar-se, nem viver, porque há um homem a quem devem a obediência de existir.

Um homem que decide como a “sua” mulher se deve vestir e, sobretudo, o que ela não pode vestir; o que ela deve dizer e, sobretudo, o tanto que ela tem de calar; como ela deve olhar e, sobretudo, para onde ela não pode olhar.

Um homem que decide a que horas a “sua” mulher deve chegar a casa e quanto tempo ela deve demorar no percurso.

O mesmo homem que diz que “a ama”. Que lhe diz que “sem ela não pode viver”. Um homem que diz que “a quer proteger": proteger dos outros homens, proteger dela mesma, proteger do mundo. Um homem que só se esquece de a proteger dele próprio e da sua raiva atávica.

Pessoas que, por serem mulheres, são mortas devagar, são mortas aos poucos, todos os dias, até que quase nada há para matar, nesse dia em que, finalmente, a arma se dispara, a faca se crava, ou as mãos se apertam à volta do pescoço.

Mulheres que são mortas e se convertem num número, em mais um número. Um número desses que abalam, num estremecimento incomodado; desses que alimentam manchetes de jornal, e para os quais estão a ser estudadas as respostas que irão ser implementadas (quando?). Um número que corresponde a uma queixa, a muitas queixas, à impotência das queixas. Um número que há-de ditar uma sentença judicial, talvez absurda, como tantas outras.

Um número, apenas, até que outro número se lhe some.

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