Um livro para os Demagogos & Cia. Lda

É bom começar o ano com um reboot mental, como fazemos às máquinas. O primeiro coffee break de 2020 é sobre como o mundo está no bom caminho.

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Reparei ontem no cartaz que o Martinho da Arcada pendurou na esplanada: “A alegria é a coisa mais séria da vida!” A frase foi tirada de um texto que Almada Negreiros escreveu em 1932. Amigo de Fernando Pessoa, foi neste café que os dois estiveram juntos pela última vez. Três dias depois, Pessoa morreu.

No texto original de Almada, a ideia de alegria está carregada de ideologia. Mas mesmo tirada do contexto — alto risco — continua a ser verdadeira. A alegria é uma coisa séria. Que o diga o médico e estatístico sueco Hans Rosling, co-fundador da Gapminder e autor do livro Factfulness – Dez Razões pelas quais Estamos Errados Acerca do Mundo e Porque as Coisas Estão Melhores do que Pensamos (Temas e Debates, 2019). Espero que este Natal alguém o tenha oferecido ao deputado André Ventura, mas é útil a todo o tipo de pessoas.

Durante anos, Rosling testou os níveis de ignorância de audiências de vários países e profissões: estudantes de medicina, professores, conferencistas universitários, cientistas eminentes, investidores bancários, executivos de companhias multinacionais, jornalistas, activistas e decisores políticos de topo. “Pessoas altamente instruídas que se interessam pelo mundo”, diz Rosling na introdução. “Mas a maioria delas — uma espantosa maioria — erra a maior parte das perguntas.”

Que perguntas tinha o seu teste? Nos últimos 20 anos, a proporção da população mundial que vive em pobreza extrema quase duplicou, manteve-se idêntica ou diminuiu quase metade? A resposta certa é a última: entre 1997 e 2017, a pobreza extrema caiu quase metade. Rosling diz que esta é a “mudança mais importante que aconteceu no mundo” desde o fim da II Guerra Mundial, mas que poucos sabem disso. No seu inquérito, só 7% das pessoas dá a resposta certa.

Outra pergunta: “Em 1996, os tigres, os pandas-gigantes e os rinocerontes-negros foram listados como espécies em risco. Quantas delas estão em risco crítico hoje? A: Duas/B: Uma/C: Nenhuma.” De novo, a resposta certa é a C: os três animais deixaram de estar em risco de extinção. Sim, outros animais passaram a estar em risco, mas isso não deve apagar as boas notícias. Outra pergunta: a ONU prevê que em 2100 a população mundial terá aumentado mais de quatro mil milhões de pessoas. Qual a principal razão? A: haverá mais crianças/ B: haverá mais adultos/ C: haverá mais idosos (a resposta certa é a B). E por aí fora.

Como este é o primeiro coffee break do ano, sucumbi ao cliché da crónica optimista. Uma espécie de reboot mental, como fazemos aos computadores. A ideia é guiarmos melhor em 2020. Quando usamos o GPS no carro, é importante que ele tenha a informação correcta. Não confiaríamos nele se os dados que nos dá para nos orientarmos fossem de uma cidade diferente daquela onde estamos, diz Rosling. “Como poderão os homens de negócios tomar decisões sensatas para as suas organizações, se a sua visão do mundo estiver de pernas para o ar? Como poderá cada pessoa saber que questões a devem assustar e preocupar?”

Durante décadas e até morrer — literalmente —, Rosling lutou contra a “visão negativa do mundo” e a “devastadora ignorância global”. Queria “acalmar os medos irracionais” das pessoas e “redireccionar as energias para actividades construtivas”. A arma? Compilar e analisar factos incontroversos e apresentá-los como “fonte de paz mental”. Ele chama-lhe “dados com terapia”. Como usa muitos dados da ONU, estatísticas incontroversas que mostram que o mundo está melhor do que pensamos, fala num “novo tipo de pílula da felicidade, completamente grátis online!”. O livro Factfulness é um concentrado desta receita médica. São 330 páginas sobre “o secreto milagre silencioso do progresso humano”. Conclusão? “O mundo não é tão dramático como parece.” Exemplos:

— o mundo já não é dividido em dois, entre países ricos e pobres com um fosso no meio: hoje 75% da população do planeta vive em países de rendimento médio, “nem pobres, nem ricos, mas algures no meio e começando a ter uma vida razoável”;

— 60% das raparigas de todos os países de baixo rendimento terminam o ensino primário (e não 20% como muitas pessoas respondem nos testes);

— de toda a população mundial, só 9% vive em países de baixo rendimento (e não 60%);

— juntando os países de rendimentos médio e alto, obtemos 91% da humanidade;

— a maioria destes 91% de cidadãos do planeta “integraram-se no mercado global e fizeram um excelente progresso na direcção de uma vida decente”;

— em vez de dividir o mundo em dois grupos, o professor Rosling propõe quatro grupos definidos com base no nível de rendimento: Nível 1 (dois dólares por dia), Nível 2 (entre dois e oito dólares/dia), Nível 3 (oito a 32 dólares/dia) e Nível 4 (mais de 32 dólares por dia). Cinco dos sete mil milhões de habitantes vivem em países de Nível 2 e 3. Mil milhões vivem no Nível 1 (mais pobre) e mil milhões no Nível 4 (mais rico);

— “A história humana começou com toda a gente no Nível 1. Durante mais de cem mil anos, ninguém subiu de nível e a maioria das crianças não sobreviveu até se tornar progenitor. Em 1800, há apenas 200 anos, 85% da população mundial estava no Nível 1, na pobreza extrema. No Reino Unido, “a criança típica começava a trabalhar aos dez anos” e “um quinto da população sueca fugiu da fome para os Estados Unidos”;

— até 1966, a pobreza extrema era a regra, não a excepção da humanidade. A partir desse ano, só metade da população mundial vivia em pobreza extrema. Em 1997 era 29% e hoje é 9%. “Devíamos dar uma festa! Uma grande festa!”, escreve Rosling. “Em vez disso, estamos sombrios.” Foi Rosling quem convenceu o Banco Mundial (BM) a deixar de usar as expressões “países desenvolvidos” e “em desenvolvimento” e a adoptar os quatro níveis. O BM fez o anúncio oficial dessa mudança em 2016;

— a esperança de vida no mundo é de 70 anos. Nenhum país tem esperança de vida abaixo dos 50;

— há 16 coisas terríveis que estão quase a desaparecer e 16 coisas maravilhosas que melhoraram. Não são coisas esdrúxulas e algumas são usadas por Ventura e os seus colegas do Chega para assustar os portugueses. E ainda nem vamos a um quarto de Factfulness, onde Rosling propõe que até nas alterações climáticas há boas notícias por causa do “grande êxito de consciencialização.

Um bom 2020 com mais alegria, muitos factos e poucas bugigangas demagógicas.

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