Coaptação voluntária de médicos para o SNS. Onde está a dificuldade?

Premiar os jovens médicos que voluntariamente optem pelo Serviço Nacional de Saúde seria talvez um primeiro sinal de mudança.

Há poucos dias teve lugar o exame de seriação dos médicos com vista à escolha da especialidade e vários jornais deram notícia das dificuldades na entrada para a especialidade, bem como sobre o número crescente de candidatos que ficarão fora do sistema, por falta de vagas. Um desses jornais intitulava mesmo: Jovens Médicos já só pedem para ter vaga.

Isto é, o numerus clausus em Medicina passou a ser não só no momento da entrada para a Universidade (em Portugal, só há formação médica nas Universidades Públicas), mas também, aquando da escolha da especialidade (formação, entre nós, praticamente exclusiva do Serviço Nacional de Saúde).

Ora, tendo sido repetidamente anunciadas dificuldades em reter médicos no SNS, em algumas especialidades e regiões, justifica-se a necessidade urgente de fixar clínicos, e o mais conveniente será fazê-lo enquanto são jovens. 

O timing da carreira médica para essa coaptação tem vindo a ser anunciado pelo Ministério da Saúde como sendo quando os médicos terminam a especialidade. Contudo, seria preferível, e mais eficaz, optar por uma outra etapa anterior na formação médica, nomeadamente aquando da escolha da especialidade, isto é, no final do curso. O recrutamento nessa altura seria facilitado, não só pela pressão atualmente verificada na escolha da especialidade, em resultado do progressivo aumento do número de médicos que concorrem — alguns ficarão de fora —, mas sobretudo por ser essa uma altura da vida — início da carreira —, em que muitos médicos ainda correm atrás de sonhos.

Se os médicos pretenderem aceder a uma vaga no SNS para aí concluir a especialidade, terão então como contrapartida assumir um compromisso ao preencherem o dito lugar, o de trabalhar no SNS por um período de tempo igual ao que necessitaram para se especializarem.

O processo poderá até iniciar-se progressivamente, dando prioridade na escolha da especialidade, no início, àqueles médicos que voluntariamente assumam esse compromisso. Caso queiram vir a desligar-se dessa obrigação, terão de indemnizar o SNS, pelo menos pela verba gasta com a sua formação (não faltarão hospitais privados a quererem desembolsar essa indemnização para algumas especialidades, porque lhes ficará sempre mais económico do que formar os seus próprios quadros).

Assim, o formador, no caso o SNS, dará prioridade na escolha para a especialidade aos médicos que, para além de pretenderem especializar-se nos seus hospitais e Centros de Saúde, optarem igualmente por vir a integrar os seus próprios quadros. E, esse privilégio não será nada surpreendente, sobretudo se comparado com o que se verifica com a formação dos quadros de outras instituições e noutras áreas profissionais.

É bem conhecido o exemplo dos pilotos da força aérea, que caso pretendam abandonar a instituição para trabalhar numa companhia aérea, terão de pagar uma indemnização de forma a compensar as despesas com essa mesma formação.
No SNS existe já, há alguns anos, uma situação semelhante para os médicos das forças armadas que queiram especializar-se, e que consiste na abertura de vagas no SNS exclusivas para militares, que serão por estes ocupadas independentemente da ordem de colocação no exame de seriação. É claro que esta facilidade só se aplica a profissionais que assumam o compromisso de continuar integrados nas Forças Armadas, isto é, a médicos dos respetivos quadros, estabelecendo-se penalizações caso não cumpram o acordado.

Prioridade a quem está dentro do sistema
Será, pois, aceitável que o SNS dê prioridade aos profissionais que pretendam continuar dentro do sistema, tanto mais que a formação de especialistas é bastante dispendiosa. Aliás o sr. bastonário referiu recentemente, numa entrevista aquando do juramento de Hipócrates dos recém-licenciados da Universidade da Beira Interior, que haveria países que premeiam na escolha da especialidade os licenciados no seu próprio país. Dado que em vários países da Europa a sociedade financia a grande maioria dos médicos, oferecendo-lhe cursos universitários com propinas muito baixas, não será, pois, de estranhar medidas deste tipo.

Vale a pena lembrar ainda que, pouco tempo depois da criação do SNS, foi imposto aos médicos que pretendessem continuar no sistema o chamado “serviço médico à periferia”, que os obrigava a exercer um ano no interior mais recôndito do país, serviço esse que hoje é reconhecido por quase todos os profissionais e doentes intervenientes como uma excelente experiência. Não se entende até porque razão este serviço nunca mais foi reposto.

E, mesmo antes da criação do SNS, para se trabalhar no setor público, os médicos tinham muitas vezes de iniciar a sua atividade clínica no interior do país. Cite-se o exemplo do médico e escritor Fernando Namora, que iniciou a atividade clínica na sua terra natal em Condeixa e depois, como médico municipal, nas regiões da Beira Baixa e do Alentejo, em locais como Tinalhas, Monsanto e Pavia, acabando, finalmente, por se instalar em Lisboa no Instituto Português de Oncologia.

Se a autonomia para o exercício da especialidade é outorgada pelo título da Ordem dos Médicos, todos reconhecerão, contudo, que alguns anos de trabalho extra, integrando equipes multidisciplinares e com experiência, será uma mais-valia para qualquer profissional que opte por prolongar a sua permanência no SNS.

A medida agora proposta poderá ser implementada de imediato, no concurso do corrente ano, sem sequer alterar qualquer regra. Bastará apenas premiar no momento da escolha das vagas quem opte por continuar ligado à instituição formadora, isto é o SNS. 

Reconhecendo que esta não será a única solução para revitalizar o SNS, havendo necessidade de muitas outras, nomeadamente repôr as careiras, reestruturá-las com concursos públicos nacionais, nomear diretores de hospitais e de serviço entre os mais competentes, remunerar adequadamente os profissionais, atualizar os serviços com novas tecnologias e equipamentos, desburocratizar o trabalho clínico apoiando-o adequadamente, etc.

Provavelmente, mais do que a falta de investimento no SNS, apesar de notória, é o desânimo e a desmotivação dos profissionais, e não o reconhecimento do mérito, a causa maior desta doença que progressivamente está a depauperar e matará o Serviço Nacional de Saúde. Premiar os jovens médicos que voluntariamente optem pelo SNS seria talvez um primeiro sinal de mudança.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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