Antes que vás embora

E a vida passa mesmo depressa, avó. Daqui para a frente é uma questão de tempo, só não sabemos quanto, só sabemos que sem ti, perdida na noite mais escura, num Inverno sem fim.

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Quero que saibas que me importo, que nunca me vou esquecer de ti, avó. Foste sempre a minha mãe. Também foste a minha mãe, sem que eu pedisse, sem que te pedissem, até hoje. 

Apesar de ainda por aqui andares por muitos e bons anos, mas só em corpo. A mente desistiu. Desistiu de lutar. Mas lutar porquê, ou para quê, quando os meses passaram para dar lugar aos anos passados sozinha.

Sozinha no lar, para onde foste sem poderes voltar. Se dependesse de mim, viverias até ao fim em casa, condignamente.

Na casa agora deserta, os corredores vazios e frios onde aprendi a andar, ainda estou a aprender a andar, a sala onde sempre nos recebeste, a mesa cheia, o avô à minha espera de volta dos livros antes de ficarem só os livros, antes de ficar só a mesa e as paredes cheias de pó, sem sentido. As paredes não te podem substituir, não falam, a água já não corre das torneiras e a luz não funciona. A casa às escuras antes de fechar a porta na certeza da última vez. 

A tua força, o teu saber, a vontade de saber quanto se passa no mundo, nas nossas vidas mesmo agora que o fim se aproxima, para poderes dizer, aconselhar, guiar, sempre mais preocupada connosco e nem por isso contigo, ainda para mais agora, acamada, a recusar o andarilho: antes a morte que a degradação do corpo à vista de todos.

Mãe. Mãe e pai, a necessidade de controlo para que nada de mal nos aconteça, a vontade de proteger, a necessidade de proteger, resultado do saber de quem viveu mais, de quem sabe mais, mesmo quando não estamos de acordo, mesmo quando queremos abrir as asas e voar com a cabeça contra a parede, à nossa vontade.

Mesmo assim, nunca nos deixaste, nunca te foste embora. Sempre presente a avaliar os estragos, a erguer-nos dos escombros das nossas vidas para que possamos voar, mas como deve ser.

Mas os olhos já pouco vêem, a televisão de pouco serve, o rádio faz impressão e o mundo apaga-se, foge de ti aos poucos. O relógio, o último reduto do tempo, parou à volta do pulso e não está aqui ninguém para substituir uma triste pilha.

Fruto das circunstâncias, a família desmembrada e longe não pôde mais, não te pôde ver mais e agora o fim aproxima-se a passos largos depois de 93 anos de vida.

E a vida passa mesmo depressa, avó. Daqui para a frente é uma questão de tempo, só não sabemos quanto, só sabemos que sem ti, perdida na noite mais escura, num Inverno sem fim. Quando o Inverno chegar ao fim, a probabilidade de cá não estar para te segurar a mão é maior que muita. Mais ninguém te vai querer segurar a mão.

Mecanicamente, o mundo despedir-se-á de ti, como se nada fosse, e não é, apenas um corpo, como se nunca tivesses sido mulher, mãe, vida, como se não fosse tua a casa onde agora estamos, como se não fosse teu o telhado a cobrir-nos da chuva, a relva onde corremos, o sol, a praia, a areia onde nos aquecemos, o mar onde nos refrescamos.

Tudo o que somos e temos é teu. Um obrigado é o mínimo. Se estivermos presentes. Se chegarmos a tempo. 

Enquanto o dia não chegar, enquanto não chegar o dia a que eu não quero chegar, estou a caminho de ti para te segurar as mãos, trinta anos depois de nos dizeres trinta vezes que é a última vez, e é, avó, é a última vez, mas desta vez quem o diz sou eu.
 

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