Escultura aos burgessos

Não deixa de ser estúpido que quem esteja preocupado com o dinheiro gasto em arte pública e não em outras áreas de actuação do município de Matosinhos tenha exactamente feito com que a edilidade venha a gastar mais alguns cobres na remoção das pichagens.

O ser humano pode ser, realmente, pouco… eficaz na utilização dos recursos intelectuais disponíveis. A escultura A Linha do Mar, de Pedro Cabrita Reis, foi vandalizada e nela inscritas palavras como “vergonha”, “300 mil”, “isto é Leça” e “somos Ψ”.

Estamos perante um crime público de dano qualificado (artigos 213.º, n.º 1, al. b) e  n.º 2, al. a) do CP – “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável monumento público (…)” e “de valor consideravelmente elevado”, punível com prisão de 2 a 8 anos”) e, como em qualquer delito, todos esperamos que o MP, auxiliado pelos órgãos de polícia criminal, tudo façam para identificarem o agente ou agentes (nomeadamente recorrendo a eventuais imagens de videovigilância públicas ou de privados que abranjam aquela zona, o que parece pouco provável).

A arte é das coisas mais difíceis de definir, exactamente porque não o pode nem deve ser. É mais um sentimento, uma emoção, um arrebatamento, um murro no estômago, uma lágrima que salta. E naturalmente que é aberta a paixões e a ódios. Mas, por muito que se não goste da escultura em causa, não deixa de ser estúpido que quem esteja preocupado com o dinheiro gasto em arte pública e não em outras áreas de actuação do município de Matosinhos tenha exactamente feito com que a edilidade venha a gastar mais alguns cobres na remoção das pichagens.

Se é uma vergonha que se gaste aqui e não em habitação social ou em educação, mais vergonhoso ainda é manifestar esse descontentamento desta forma covarde e que ainda vai onerar mais a Câmara. Que é feito das petições, dos abaixo-assinados, das presenças nas reuniões públicas das Assembleias Municipais, das manifestações pacíficas e, naturalmente, do poder do voto para tirar do poder quem se julga não ter governado bem?

Ah, pois. Isso são coisas antiquadas. Não passam tanto na televisão e nos jornais sensacionalistas; não têm impacto. E como se vive para um título, assim é mais eficaz. No tempo do efémero, assim é que se discute em democracia: destruindo, insultando. E dando a cara pela diferença de opinião. A democracia está, pois, de boa saúde. E as pessoas que melhoraram a qualidade estética da escultura de Cabrita Reis (como ainda estamos sob o efeito anestesiante das Festas, vou acreditar na bondade humana) deviam ser convidadas, elas mesmas, a criarem obras de arte.

Todos sabemos que a vida política (e a pessoal) é feita de opções. Não discuto, porque não sei, se o investimento foi ou não economicamente racional ou se deveria ter sido canalizado para outros sectores. Muito menos o preço. O que me parece absolutamente irracional é que se não usem os mecanismos existentes na democracia para criticar opções políticas em relação às quais se pode estar coberto de razão e se acabe por ceder ao primarismo. Que, ainda por cima, vai sair mais caro à autarquia e que, por certo, vai ser repetido, conhecido que é o efeito de imitação. O que, provavelmente, obrigará a contratar um segurança privado para vigiar a escultura. 

Se há ou não ligações à extrema-direita, julgo precipitado dizê-lo, pois há burgessos em todos os quadrantes políticos e a pouca experiência que vamos tendo com a maior visibilidade pública do que sempre existiu em Portugal aconselha muita prudência. Não se dê palco a mais a quem vive do e para o palco.

“Isto é Leça”, escreveram. Isto não é Leça, Matosinhos ou Portugal. Isto é falta de cultura democrática. Isto é um crime. E isto é uma tremenda estupidez, um tiro no pé.

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