Mortalidade materna: floresta de enganos

Nenhuma razão substantiva justifica taticismo e secretismo na agenda da revelação dos dados conhecidos pelas autoridades, e na explicação dos critérios que fundamentaram a mudança no número de mortes maternas.

Não, não é comédia: é um drama.

Uma terrível tragédia se está a abater – perante o silêncio ou distração de tantos (na Assembleia da República, no Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, na Entidade Reguladora da Saúde, por exemplo) - sobre um dos mais emblemáticos e vangloriados indicadores de saúde nacional, a mortalidade materna, até agora motivo do nosso orgulho pela qualidade de cuidados de saúde materna que traduziria.

E mesmo que a mortalidade materna não seja o único indicador da qualidade de saúde materno-fetal praticada, a qual há que considerar no contexto mais vasto de outros indicadores igualmente essenciais - por exemplo, a morbilidade materna, a mortalidade e morbilidade perinatal – a morte materna tem hoje que ser cada vez mais residual.

Sucede, porém, que, a confirmarem-se os dados da última revisão sobre as mortes maternas entre 2016 e 2018 em Portugal, a verdade parece ser esta: pura e simplesmente, passe o coloquialismo, andávamos todos enganados.

Porque, afinal, a fantástica e “exemplar” mortalidade materna que julgávamos deter e que nos colocava nos mais elevados patamares a nível mundial, e que era fruto do nosso justificado orgulho, será, de facto, a penúltima entre os países da OCDE: temos 12,7, 12.8 e 17,3 por 100.000, respetivamente em 2016, 2017 e 2018.

Mais: não tendo ainda sido feita a revisão das mortes maternas ocorridas antes de 2016, nada é, neste aperto e nesta insegurança, conhecido, nem sequer as tendências verificadas neste século são agora identificáveis com rigor.

Aumentou o nosso desconhecimento.

Tudo o que sabemos é que a mortalidade materna, entre 2016 e 2018, é muito má, quase terceiro-mundista.

E é legítimo temer o pior: quem ousará hoje garantir que tais indicadores, anteriores a 2016, foram verdadeiros, positivos e correspondem à realidade?

A confirmarem-se as piores suspeitas, sucedem-se as perguntas:

Quem sairá incólume desta floresta de enganos? Quem vai ser responsabilizado por este engano?

Quem admite o erro - certamente não doloso ou intencional (ninguém quis enganar ou mentir) – mas erro revelador de muita incompetência e descoordenação ao mais alto nível institucional? 

Vivemos, pois – vivemos, no pretérito e no presente -, numa imensa floresta de enganos.

Senão, vejamos:

O número total de mortes maternas em 2017 e 2018 não muda (26), mas é agora revisto em baixa agora para 2018 (de 17 para 15) e revisto em alta em 2017 (de 9 para 11). E em 2016 sobe de 7 para 11.

São factos de muito difícil compreensão para o cidadão vulgar, e não só: então há diferentes definições ou interpretações de mortes maternas devidas à gravidez, ao parto ou ao puerpério?!

É imperioso e urgente que profissionais de saúde e responsáveis políticos se entendam, transmitindo confiança plena com transparência e evidência da razão destas mudanças.

Foram os médicos obstetras que se enganaram ao preencher o SICO (Sistema de Informação de Certificado de Óbito)? Se não, como entender a dissonância de critérios em certas mortes maternas entre a DGS e o INE, quando ambas instituições dispõem dos mesmíssimos dados sobre as mesmas mortes maternas, devidamente atestadas e corretamente notificadas pelos médicos?

Há que lembrar, sublinhar e defender que qualquer grávida – até para poder escolher onde quer ser seguida e onde quer parir - tem pleno direito a saber qual a autêntica mortalidade materna existente nos hospitais do SNS, nos hospitais privados e nos partos não hospitalares em Portugal.

E os profissionais de saúde – obstetras, pediatras, anestesistas - têm o dever de conhecer tais indicadores, de refletir sobre a respectiva evolução e dimensão, partilhando com a grávida tal informação – tudo aspetos básicos no direito à informação, no respeito pela autonomia, para mais num país cujo Governo elegeu – e bem - o crescimento demográfico e a natalidade como prioridades.

 Ora, a DGS, que dispõe desses dados - até porque agora reviu os processos clínicos em causa -, não adianta quantas mortes ocorreram nos hospitais do SNS, nos privados e fora dos hospitais.

É inaceitável, é intolerável, ética e civicamente. Revela uma mentalidade e um espírito hermético, opaco, um desrespeito objectivo para com o direito à escolha das grávidas e cidadãos. Tão mais grave quanto, de acordo com os dados revelados antes da actual revisão, a mortalidade materna nos hospitais privados seria 4.5 vezes superior à dos hospitais do SNS, respetivamente 56.6 e 12.4 por 100.000, apesar de os hospitais privados, por regra, transferirem para os hospitais do SNS a maioria das grávidas de risco, o que deveria concorrer, precisamente, para que os hospitais privados tivessem menor mortalidade materna.

Não sendo assim, há que saber os motivos, sem delongas, deste surpreendente paradoxo. Porque será, então, um fenómeno contra toda a lógica de boa medicina materno-fetal e de boa ética médica.

É certo que há mortes maternas em hospitais do SNS que resultam quer de transferências tardias de hospitais privados, quer de grávidas que tentaram antes e sem sucesso ter o seu parto planeado em casa – como sucedeu em Setembro deste ano num caso mediático de uma cantora estrangeira que foi tardiamente para a MAC, vindo a falecer no Curry Cabral por paragem cardíaca.

No meio de todo este acervo de enganos, impõe-se total transparência e revelação da verdade, única forma de se recuperar a confiança nas instituições e decisores

Nenhuma razão substantiva justifica taticismo e secretismo na agenda da revelação dos dados conhecidos pelas autoridades, e na explicação dos critérios que fundamentaram a mudança no número de mortes maternas, recusando aos interessados o conhecimento que os habilite a uma escolha informada, livre e esclarecida, timbre de uma democracia participativa.

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