O mito do “ser humano novo” às 12 badaladas

O desejo de mudança pela mudança é inconsequente e só nos deixa deprimidos. Sejamos realistas: alteremos apenas e tão-só o que depende de nós.

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Passagem de ano Paulo Pimenta

Às 12 badaladas de cada fuso horário do mundo, nesta passagem de 2019 para o número redondo 2020, tudo vai mudar! Trump vai passar a ser um tipo racional, equilibrado, preocupado com a catástrofe ambiental que traz a Terra a prazo. Macron, juntamente com Merkel, vai dar um novo impulso ao projecto europeu. A China deixará de empregar mão-de-obra escrava e infantil para ser competitiva e não mais usará espionagem tecnológica. Putin verá a luz da democracia, desanexará a Crimeia e ligará a Bolsonaro e a Orbán para, juntos, marcharem pelo “orgulho gay” nas ruas de Amesterdão. A Catalunha aceitará a unidade de Espanha, exigindo que o rei se mude para o Palácio da Generalitat.

O Papa verá os cardeais do mundo inteiro caírem a seus pés e, de mãos dadas, reformarão a Igreja Católica, aproximando-a das primeiras comunidades de crentes. Os líderes islâmicos combaterão seriamente o extremismo – no que se juntarão aos demais líderes de todas a religiões – e os grupos terroristas desta inspiração deixarão de existir. A China reconhecerá a autodeterminação do Tibete e convidará o Dalai Lama para Ministro dos Cultos.

André Ventura apresentará projectos de lei em conjunto com Joacine Katar Moreira, usará missangas e rastas no cabelo, e não mais recorrerá ao populismo. O Governo acordará da sua letargia de quem vai gerindo o dia-a-dia, ora sai Centeno, ora fica, ora se governa para dois anos, ora para a legislatura, passando a gerir o país em luta sem quartel contra a corrupção, incentivando a produção nacional, considerando mais importantes os pobres que os bancos. Alguém unirá o PSD e até Santana regressará a uma militância de base. Jerónimo deixará de dizer “portanto” como quem respira e o PAN defenderá ao mesmo nível os direitos dos animais e das pessoas.

Todos seremos ricos, esbeltos, felizes, sem rugas, educados, corteses, bem-educados. Tudo se transformará em “rios de leite e mel”. Ninguém mais passará fome, sede, injustiças, guerras, tormentas, sofrimentos físicos, psíquicos ou espirituais. Todos compreenderemos que a massa humana é toda a mesma e que a diferença é que nos engrandece.

Pronto. Já fui cáustico q.b. A mudança de ano opera-se num segundo, mas as mudanças dentro de cada um de nós demoram anos e, às vezes, morremos sem as conseguirmos. Elas são um caminho, às vezes uma corrida de obstáculos, mas nunca uma maratona em que tudo muda num ápice. Se o que escrevi acima é tão irreal quanto estúpido, porque seria diferente com cada um de nós? Se há coisas a mudar, façamo-lo com a consciência de que não se pode modificar tudo ao mesmo tempo. Se o fizermos, que restará das fundações em que qualquer casa tem de assentar? E à medida que o tempo avança, cada vez me revejo mais na convicção de que os podres das nossas vidas convivem com as partes sãs. Não deitamos uma maçã inteira ao lixo por estar “tocada”, mas retiramos essa parte e o resto converte-se em alimento.

O desejo de mudança pela mudança é inconsequente e só nos deixa deprimidos. Sejamos realistas: alteremos apenas e tão-só o que depende de nós. Quanto ao resto, deixemos a vida seguir o seu curso e não queiramos mudar os outros que já são adultos. Não funciona e acaba por ser autodestrutivo, para além de cerceador da liberdade dos outros. Todas e todos temos direito a sermos uns/umas sacaninhas. E mesmo esses seres dão um certo colorido aos nossos dias.

Quando passarmos de 2019 para 2020, tenhamos a certeza de que o sol continuará a nascer e a pôr-se, que a lua aparecerá, que haverá dia e noite e que – esperamos nós – continuaremos a respirar. E enquanto esta função vital existir, há sempre hipótese de recomeçarmos e destruirmos o que está mal. Por etapas, em modo baby steps, antes que partamos a casa toda e não sobre pedra sobre pedra. Vejam lá que o SNS é particularmente mau na saúde mental!

Boa passagem, não de ano, mas de um dia em que muda o ano do calendário!

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