Qualquer coisa se pode escrever, mas nem tudo o que se escreve tem fundamento

Resposta ao artigo de opinião publicado no suplemento Fugas, na edição do dia 14 de Dezembro, intitulado “A insuportável arrogância de alguns defensores dos vinhos “naturais”», e escrito por Pedro Garcias, jornalista e produtor de vinhos no Douro.

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Nelson Garrido

Quem diria que o lema utilizado pelo grupo de produtores Passevinho –  “qualquer vinho se pode provar, mas não é qualquer vinho que se consegue beber” – iria desencadear tanta impaciência e irritação…

Pedro Garcias tem dado nas vistas à custa dos seus artigos com tom sensacionalista, atacando alguns poderes estabelecidos ou actores com uma visibilidade crescente, qual justiceiro solitário e “implacável”. Mais recentemente, dedicou vários artigos à questão do natural e do industrial, onde ele próprio se intitulou “Um pária entre os vinhos ‘naturais’ e os vinhos ‘convencionais'” (artigo de 2 de Novembro). O seu coração balança entre os dois e, enquanto hesita, dispara em ambos os sentidos. Agora, continuando no tema dos vinhos naturais, decidiu fazer um "manifesto contra a arrogância de quem os promove e defende desta maneira".

Todo o corpo do artigo tem argumentos válidos sobre a intolerância de apreciadores e produtores face a vinhos que consideram estar numa facção diferente da sua. Até aqui, nada temos a dizer. Mas Pedro Garcias decidiu iniciar o artigo de espada em punho, ilustrando o seu manifesto com o lema utilizado pelo grupo de produtores Passevinho, fazendo uma interpretação burlesca que se encontra longe do sentido com que o grupo o utiliza. Partindo dessa leitura, faz afirmações insultuosas, de forma ofensiva, visando individualmente cada pessoa do grupo, apelidando-nos de radicais e insuportavelmente arrogantes.

Na verdade, Pedro Garcias foi sempre convidado para a prova anual Passevinho e apareceu pela primeira vez na quarta edição, que se realizou no dia 25 de Novembro, mas só marcou presença quando a prova já tinha terminado e rapidamente saiu. Caso tivesse comparecido, poderia ter provado, ouvido e questionado os membros do grupo sobre a sua abordagem, produção e sobre o mote utilizado, de modo a realizar uma opinião fundamentada. Mas não o fez.

Vimos então agora esclarecer o que ele não se deu ao trabalho de procurar:

O Passevinho nasceu de uma iniciativa de um quinteto de pequenos produtores e amigos, para se juntarem numa galeria de arte chamada Passevite e fazerem uma prova anual oferecida e aberta a toda e qualquer pessoa interessada.

Todos diferentes, temos em comum [o facto de] cultivarmos vinhas próprias e fazermos vinhos com uma viticultura biológica provenientes de terras ou regiões ligadas às nossas origens, com vinificações naturais de baixa intervenção. Alguns dos vinhos não têm adição de sulfitos, a maioria deles leva doses baixas. Trabalhar de modo natural e artesanal não é um fim mas sim um meio para evidenciar a identidade do território de origem. Vivemos todos na região vitícola de Lisboa e o que nos une é gostarmos de vinho e estarmos a fazer um caminho conjunto na produção. Partilhamos material, ajudamo-nos no campo e na adega, somos críticos e francos sobre os vinhos uns dos outros, entre viagens pela Europa do vinho e boas gargalhadas.

Todos os vinhos produzidos pelos elementos do grupo podem ser considerados naturais? Diríamos que não, já que alguns, para além das vinhas que cultivam em biológico, elaboram vinho a partir de uvas de outros viticultores que não estão produzidas de modo natural e cujas vinhas julgamos serem um património que queremos valorizar e não deixar abandonar. Alguma vez referimos que somos um grupo de produtores de vinhos naturais? Também não. Gostamos de trabalhar de forma livre e independente, não precisamos de petrificar o grupo numa etiqueta e num caderno de encargos, porque a proximidade desenvolvida entre cada membro permite certificar-se dos modos de trabalho e dos valores humanos. Temos muito que aprender e sem dúvida que gostaríamos de produzir apenas em modo natural na vinha, para preservar os recursos naturais e humanos, e fazer evoluir os vinhos.

Essencialmente queremos elaborar vinhos com vida e carácter, que nos dêem prazer a beber, e aqui chegamos ao nosso lema. O lema do Passevinho – “Qualquer vinho se pode provar, mas não é qualquer vinho que se consegue beber” – joga com o primeiro slogan publicitário da marca Passe-Vite, na origem do nome da galeria de arte onde é realizada a prova para o público: “Tout Passe-Vite est une passoire mais toute passoire n’est pas un Passe-Vite”. O jogo de palavras pretende explorar a ideia de que há vinhos que impressionam em prova, mas não dão gozo a beber, por serem demasiado pesados, maquilhados e chatos. Há quem os chame de vinhos Barbie. A interpretação de Pedro Garcias é que “os vinhos bebem-se, mas, segundo os mentores do Passevinho, não é qualquer um que saberá apreciá-los devidamente”. O sujeito da frase é “os vinhos” e não quem os aprecia, pelo que não conseguimos entender a sua interpretação arrancada pelas orelhas. Mas não somos nós que temos de entender a interpretação de Pedro Garcias. É ele que nos deve questionar sobre o significado do nosso mote e fazer o trabalho de terreno antes de escrever um artigo sem ética e rigor, e disparar de forma caluniosa, intercalando com um tom moderado de quem dá uma no cravo e outra na ferradura para agradar a gregos e a troianos, apenas gerando polémica vazia de conteúdo para ganhar audiência numa sociedade do espectáculo, alimentando clichés de um mundo bipolar com ligeireza e banalidade, e aguçando o radicalismo onde não nos revemos.

No próximo ano lá estaremos de portas abertas a todos, e até lá não hesitem em visitar-nos, só assim podemos contribuir para um mundo do vinho menos preconceituoso, estimulante e caloroso.

Os membros do Passevinho
António Marques da Cruz (Quinta da Serradinha e COZs), Tiago Teles (Gilda, Raiz e COZs), Rodrigo Filipe (Humus/Encosta da Quinta), Pedro Marques (Vale da Capucha) e Sílvia Mourão Bastos e Nadir Bensmail (Os Goliardos e Tomaralmá). Este ano tivemos como produtor convidado o Guillaume Leroux (Monte da Casteleja) igualmente visado no artigo de Pedro Garcias.

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