Quénia

Mutilação genital feminina: esta escola-abrigo protege as meninas das suas famílias

Estudantes a caminho da Escola de Raparigas Naning'0,i em Mosiro, distrito de Kajiado ©Natalia Jidovanu
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Estudantes a caminho da Escola de Raparigas Naning'0,i em Mosiro, distrito de Kajiado ©Natalia Jidovanu

Lasoi tinha 10 anos quando o pai a informou que se iria casar dentro de dias. Apesar de nunca ter sequer visto o futuro marido, a notícia não a surpreendeu. Afinal, tinham passado apenas 11 dias desde o corte. A excisão. O procedimento que é também conhecido por mutilação genital feminina. É de senso comum, na tribo maasai, que nenhuma mulher – neste caso, menina – se casa "intacta". Todas passam pelo mesmo, apesar de o governo do Quénia ter proibido a prática em 2011. Por imposição familiar, Lasoi acabou mesmo por se casar. Na manhã que se seguiu à noite de núpcias, fugiu de casa do marido em direcção à casa dos pais, onde foi recebida com violência e, em seguida, devolvida. Uma semana depois, a menina repetiria a proeza; e os pais repetiriam a sova e a devolução. A insurreição de Lasoi levou a que os seus pais a renegassem, permanentemente, e a que a relação com a nova família azedasse ao ponto de ser vítima diária de agressões.

Um dia, poucas semanas após o casamento, Lasoi foi encontrada inconsciente num descampado próximo da sua nova casa. Contou à Nashipai Maasai Community Project que o marido a tinha seguido e lhe tinha batido até perder os sentidos. A organização não-governamental, que dá apoio a vítimas de mutilação genital feminina e de casamento infantil, direccionou-a para a Escola de Raparigas Naning'0i, onde é uma de 320 meninas que foram vítimas dos mesmos crimes. Não é uma coincidência. Nas zonas de Kajiado e Narok, predominantemente maasai, a estrutura social é profundamente patriarcal e conservadora.

Foi em Março de 2019 que Natalia Jidovanu ficou a conhecer de perto esta realidade. "Fui lá, primeiro, como fotojornalista", contou ao P3, via Skype. "Estava a trabalhar numa história para a Al Jazeera sobre a mutilação genital feminina e outros desafios das meninas maasai." À medida que foi conhecendo as histórias das meninas dessa tribo, Natalia foi-se interessando pela Escola de Raparigas Naning'0i e compreendendo a importância do seu papel naquele contexto de pobreza. "Dentro da comunidade maasai existe a ideia de que só os rapazes devem ir à escola, e não as raparigas", explica Natalia ao P3. "O papel da mulher é estar em casa, ser mãe, tratar dos filhos, da família do marido, das vacas. Convencer os pais que as meninas têm de ir à escola é difícil. Parece-lhes um desperdício de tempo. Se uma rapariga for casada, a família vai receber vacas e a menina vai ser útil à família do marido. Se estiver na escola, a seu ver não vai servir para nada." A educação é, por isso, na opinião da luso-moldava de 33 anos, "a única forma de interromper este ciclo" de subjugação.

A história da escola, que se situa em Mosiro, tem contornos particulares. "É uma escola primária só para raparigas; tem 320 alunas e capacidade para receber mais duzentas." Foi fundada em 1999 por uma organização não-governamental e transferida para o sector público de educação queniano em 2014, "altura em que começaram a surgir os primeiros problemas de financiamento". "No ano passado a escola esteve quase a fechar, mal havia fundos para comida", lamenta a fotógrafa. A instituição funciona em regime de internato. "Para funcionar em pleno, a escola tem de garantir que as crianças têm acesso a comida, uniformes, camas, materiais escolares. Gratuitamente. Durante todo o ano." E não apenas durante o ano lectivo. "Tendo em conta o contexto em que vivem, muitas meninas acabam por permanecer na escola também durante as férias. É arriscado voltarem para casa das famílias que, a qualquer momento, as podem submeter a mutilação genital ou forçá-las a casar." 

A escola é importante para as meninas maasai e não apenas porque as protege da mutilação genital feminina e do casamento infantil. "Esta é a única escola para raparigas num raio de 500 quilómetros", explica Natalia. "Num contexto em que existe tão pouca oferta educativa para raparigas, a excisão feminina acaba por ser um problema quase secundário, embora muito relevante, claro."

Além de psicóloga e fotojornalista, Natalia é também fundadora da ArtKids Foundation, uma organização não-governamental sediada em Nairobi que promove o uso da arte e cultura para o desenvolvimento pessoal de crianças e jovens quenianos. Perante este cenário de dificuldades e diante da urgência de uma solução, Natalia decidiu "tentar fazer algo através da fundação" para ajudar a escola e as meninas maasai. "Acabámos de oferecer, esta semana, a primeira bolsa de estudo a uma menina que terminou o ensino primário, a Maria, para ela poder continuar os estudos numa escola secundária", referiu. "A Maria tem 14 anos e fugiu de casa em 2017 para escapar à cerimónia de mutilação genital que o pai estava a preparar para ela."

Intervalo entre aulas na Escola de Raparigas Naning'0i
Intervalo entre aulas na Escola de Raparigas Naning'0i ©Natalia Jidovanu
Uma estudante na Escola de Raparigas Naning'0i
Uma estudante na Escola de Raparigas Naning'0i ©Natalia Jidovanu
Estudantes no distrito de Kajiado a caminho da escola, de manhã cedo
Estudantes no distrito de Kajiado a caminho da escola, de manhã cedo ©Natalia Jidovanu
Estudantes no distrito de Kajiado a caminho da escola, de manhã cedo
Estudantes no distrito de Kajiado a caminho da escola, de manhã cedo ©Natalia Jidovanu
Estudantes lavam a loiça de manhã na Escola de Raparigas Naning'0i
Estudantes lavam a loiça de manhã na Escola de Raparigas Naning'0i ©Natalia Jidovanu
Estudantes lavam a loiça, de manhã, na Escola de Raparigas Naning'0i
Estudantes lavam a loiça, de manhã, na Escola de Raparigas Naning'0i ©Natalia Jidovanu
Estudante a caminho da sala de aula na Escola de Raparigas Naning'0i
Estudante a caminho da sala de aula na Escola de Raparigas Naning'0i ©Natalia Jidovanu
Sala de aula na Escola de Raparigas Naning'0i
Sala de aula na Escola de Raparigas Naning'0i ©Natalia Jidovanu
Retrato de Salei Koikai, 65, mulher maasai que vive em Mosiro e praticou mutilação genital feminina durante mais de 30 anos em raparigas da zona de Mosiro (era "traditional circumciser" em ingles). A mutilação genital feminina era a ocupação de Salei, prática que realizava a pedido das famílias das raparigas e pela qual recebia pagamento. Salei abandonou a prática há cerca de 8 anos, depois de se aperceber e reflectir sobre os efeitos negativos da mutilação genital feminina na saúde e vida das mulheres.
Retrato de Salei Koikai, 65, mulher maasai que vive em Mosiro e praticou mutilação genital feminina durante mais de 30 anos em raparigas da zona de Mosiro (era "traditional circumciser" em ingles). A mutilação genital feminina era a ocupação de Salei, prática que realizava a pedido das famílias das raparigas e pela qual recebia pagamento. Salei abandonou a prática há cerca de 8 anos, depois de se aperceber e reflectir sobre os efeitos negativos da mutilação genital feminina na saúde e vida das mulheres. ©Natalia Jidovanu
Mulheres Maasai com adornos e roupas tradicionais da tribo (em Mosiro)
Mulheres Maasai com adornos e roupas tradicionais da tribo (em Mosiro) ©Natalia Jidovanu
Mulheres maasai com adornos e roupas tradicionais da tribo, em Mosiro
Mulheres maasai com adornos e roupas tradicionais da tribo, em Mosiro ©Natalia Jidovanu
Mulheres maasai com adornos e roupas tradicionais da tribo, em Mosiro
Mulheres maasai com adornos e roupas tradicionais da tribo, em Mosiro ©Natalia Jidovanu
Homens Maasai com adornos e roupas tradicionais da tribo, em Mosiro
Homens Maasai com adornos e roupas tradicionais da tribo, em Mosiro ©Natalia Jidovanu
Mulheres maasai com adornos e roupas tradicionais da tribo, em Mosiro
Mulheres maasai com adornos e roupas tradicionais da tribo, em Mosiro ©Natalia Jidovanu
O caminho para chegar a Mosiro
O caminho para chegar a Mosiro ©Natalia Jidovanu
Mulheres maasai carregam mercadorias, a caminho de Mosiro
Mulheres maasai carregam mercadorias, a caminho de Mosiro ©Natalia Jidovanu
Raparigas estudantes na entrada da Escola de Raparigas Naning'0i
Raparigas estudantes na entrada da Escola de Raparigas Naning'0i ©Natalia Jidovanu
Sala de aula na Escola de Raparigas Naning'0i
Sala de aula na Escola de Raparigas Naning'0i ©Natalia Jidovanu
Estudante a chegar à escola
Estudante a chegar à escola ©Natalia Jidovanu