Je suis Porta dos Fundos

Dá sempre jeito ter os radicais religiosos do seu lado ou mesmo aqueles que, mais moderados, só conseguem afirmar a liberdade de criação artística quando o retratado é o Deus do outro.

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Gregório Duvivier é Jesus gay no episódio especial do Porta dos Fundos na Netflix DR

Uma produtora de humor é atacada com cocktails molotov e, em consequência, morrem vários trabalhadores. O móbil dos atacantes é um programa televisivo em que retratam o Deus destas pessoas de modo que os mesmos consideram inadmissível, porque desrespeitoso do que julgam ser a forma de qualquer pessoa se referir à divindade. “Je suis Charlie!”, gritou-se pelo mundo.

A única diferença entre o “Especial de Natal” da Porta dos Fundos é que ninguém morreu. Tudo o mais é igual. E nessa altura da morte dos jornalistas do Charlie Hebdo, em 2015, o mundo uniu-se pela liberdade de expressão e criação artísticas. Uniu-se, aparentemente, como são sempre aparentes estas uniões. Repetiu-se que podemos não concordar nada com o que o outro defende ou diz, mas que lutaremos até ao fim para que ele/ela o possa dizer.

Sim, mas isto é sob certas circunstâncias, ou seja, quando a generalidade da civilização ocidental não compreende como se pode ficar ofendido com caricaturas de Maomé com bombas na cabeça, em estereótipo de muçulmanos suicidas. Mas se é o Deus dos cristãos ou dos judeus, aí fala mais alto a matriz judaico-cristã em que assenta a nossa civilização. E, magicamente, os critérios que nos guiaram já não valem nada. É muito diferente! Estão a gozar com o meu/nosso Deus!

Fui ver o programa, claro está, por não gostar de falar de cor. Não achei grande piada, humoristicamente falando, mas apreciei o facto de se questionar o que aconteceria se Jesus tivesse dúvidas quanto à missão de Salvador do mundo e que, no final, haja a luta do bem contra o mal, com a vitória do primeiro. É certo que Jesus tem um amigo abertamente homossexual com quem terá tido relações durante os 40 dias no deserto. É exacto que há impropérios, muitos deles gratuitos. Deus quer ter sexo com Maria, que rejeita, e José é apresentado como um homem fraco.

Sou cristão e em nada isto me ofendeu. Do mesmo modo que estive ao lado dos que morreram às balas do preconceito, do ódio, da discriminação, só por total falta de coerência poderia assumir, agora, posição diversa. Assim se mantém a nossa verticalidade e demonstramos que os valores em que acreditamos são imutáveis e não um ornamento que dá jeito usar quando fica bem.

Herman José já sofreu isso na pele, numa recriação da ceia de Cristo na década de 90 do passado século, programa que, para mim, tinha muito mais piada. Teve outro retirado do ar por censura em virtude de entrevistas a personagens históricas. Quando o filme Império dos Sentidos foi exibido na RTP2, alguns bispos saíram em defesa da “moral católica” e condenaram a televisão pública. Como não sabia que o filme ia dar, a cassete, na altura em VHS, correu a escola e claro que vi o meu primeiro filme porno-erótico. Os prelados podiam ter desligado a televisão ou mudado para a RTP1 (eram as duas únicas opções na altura). Mas não, continuaram a ver e ainda tiveram a lata de dizer que tinham aprendido mais com o filme que durante a vida toda. Cumprindo os votos de castidade (o que para mim não faz qualquer sentido), é mais que natural que o filme tenha sido deveras instrutivo…

Reflexo de um Bolsonaro que semeia o discurso de ódio contra as minorias, de uma poderosa bancada evangélica, de uma polícia dos costumes que foge ao essencial do que preocupa o povo brasileiro, o ex-militar deve estar empolgado com mais um fait-divers para distrair da sua inabilidade para governar. E dá sempre jeito ter os radicais religiosos do seu lado ou mesmo aqueles que, mais moderados, só conseguem afirmar a liberdade de criação artística quando o retratado é o Deus do outro. Julgo que se chamariam fariseus. E o Deus ora retratado não gostava particularmente daqueles que afirmavam uma coisa com a língua e praticavam outra com o coração. E muito menos dos que na primeira fila da igreja se mortificavam à vista de todos.

O Deus dos cristãos e judeus é amor e humor. Há-de ser caucasiano, negro, amarelo, heterossexual, gay, lésbica, ter olhos azuis, verdes ou castanhos, gostar de água, vinho ou gin, uma vez que cada um de nós foi feito “à sua imagem e semelhança”. Imagino sempre esse Deus a rir-se com a criação humana, achando mais ou menos graça ao que permite o génio inventivo que nos legou. Talvez não ache muita piada ao texto, como eu também não achei, mas de certeza que vê com muito mais preocupação esta dualidade de critérios e este obscurantismo de pensamento único e discriminatório que parece varrer não apenas o Brasil, mas o mundo inteiro.

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