Morreu Claude Régy, e o teatro francês perdeu mais um gigante

Referência fundamental da paisagem teatral europeia contemporânea, despedira-se dos palcos em 2016 com uma encenação de Rêve et Folie no Théâtre Nanterre-Amandiers. A Portugal trouxe a sua leitura da Ode Marítima de Álvaro de Campos e um belíssimo encontro com Isabelle Huppert, Psicose 4:48.

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Claude Régy em 1954, nos ensaios de uma das suas primeiras encenações Roger-Viollet/TopFoto

O teatro francês amanheceu esta quinta-feira sem um dos seus mais reverenciados e insubstituíveis mestres. Aos 96 anos, 60 dos quais dedicados à encenação, e a uma cada vez mais primorosa afinação da insondável ligação que se estabelece entre o palco e a plateia no espaço-tempo de um espectáculo, Claude Régy morreu “tranquilamente, numa casa de repouso medicalizada”, anunciaram à Agência France-Presse o seu companheiro, Alexandre Barry, e a sua assessora de imprensa, Nathalie Gasser. Os seus espectáculos, tão espartanos quanto o pequeno apartamento “monacal”, como o descreve o Le Monde, onde vivia em Paris, nunca foram para todos; mas os que o seguiram religiosamente até ao fim, em várias partes do mundo, dedicando-lhe o silêncio e a atenção totais que exigia, encontravam nele, reiteradamente, o fulgor sempre renovado de um criador nato: “É ele que faz os espectáculos que os jovenzinhos acabados de sair da escola [de teatro] deveriam fazer; é o mais radical de todos”, dizia em 2012 o coreógrafo Jérôme Bel, citado esta tarde pelo Libération.

Nascido no 1.º de Maio de 1923 em Nîmes, no Sul de França, Régy fez-se um homem de teatro à revelia da família, e da sua castradora moral protestante. O pai, oficial de cavalaria, obrigou-o a estudar Direito e Ciências Políticas em Paris, mas ao fim do terceiro ano o verniz estalou, e Régy inscreveu-se no curso de teatro que Charles Dullin fundara no mítico Théâtre de l'Atelier (curso no qual militara também, muitos anos antes, um certo Antonin Artaud...). Os pais cortam-lhe a mesada mas sobrevive com pequenos trabalhos até se estrear em 1952, depois de um período como assistente de André Barsacq e Michel Vitold no Atelier, com uma encenação da Doña Rosita de Federico García Lorca. Sucederam-se desde então dezenas de encenações e outros tantos encontros fundadores com actores como Michel Bouquet, Delphine Seyrig, Emmanuelle Riva, Gérard Depardieu (que descobriu quando era ainda um “perfeito desconhecido”, recorda a AFP), Isabelle Huppert, Sami Frey, Jean-Quentin Châtelain. Até ao seu último espectáculo, o testamentário Rêve et Folie, de Georg Trakl, que estreou em Setembro de 2016 no Théâtre Nanterre-Amandiers, manteve inabalada a defesa de uma total imersão no texto, entrega que exigia tanto dos seus intérpretes como dos seus espectadores: “[Era] uma espécie de falcão, de olhar duro e temperamento radical (...). O apóstolo do silêncio, da penumbra e do despojamento”, descreveu em tempos Gérard Dépardieu, que se estreou com Régy enquanto actor de teatro e que com ele fez seis espectáculos consecutivos entre 1972 e 1976.

Interessado sobretudo no diálogo com os seus contemporâneos, montou (e em muitos casos adaptou) textos de Marguerite Duras (a convite da própria), Nathalie Sarraute, Harold Pinter, John Osborne, Tom Stoppard, Arnold Wesker, Fernando Arrabal, Peter Handke, Edward Bond ou Jon Fosse. Mas não deixou de se aproximar, embora esporadicamente, de clássicos como Pirandello, Tchékhov ou Maeterlinck. Tal como não deixou de acompanhar as mutações que dramaturgos nascidos já na segunda metade do século XX, como Gregory Motton (n. 1961) ou Sarah Kane (1971-1999), impuseram à forma teatral. Da dramaturga britânica, cujo “mundo suicidário” não podia deixar de o seduzir (era também o mundo de outra das suas autoras de eleição, Duras, a que regressou diversíssimas vezes), encenou em 2002 um inesquecível Psicose 4:48 que a Culturgest traria a Lisboa em Janeiro do ano seguinte. Ali fixou, na mais implacável das imobilidades ("Tinha uma cruz marcada no chão para não se mexer um milímetro”, contaria o encenador ao PÚBLICO em 2009), uma soberba Isabelle Huppert, que de resto já “sacrificara” dez anos antes na ópera Jeanne d'Arc au Bûcher, de Paul Claudel.

Portugal voltou a ter acesso ao exigente teatro de Claude Régy em 2010, desta vez para receber a sua leitura da Ode Marítima de Álvaro de Campos no Festival de Almada. Um ano antes, quando o PÚBLICO o encontrou em Avignon para assistir à estreia do espectáculo, resumia assim esse seu modo-de-fazer que dependia mais do silêncio do que da palavra, apesar do respeito que tinha pelos autores e pelo texto. “Trabalhamos sobre a teatralidade e devemos ter cuidado com a linguagem. Devemos mesmo recusar todas as outras teatralidades. Impor distracções impossibilita que o texto crie imagens e transmita sensações”, dizia, explicitando a sua preferência por cenários subtis, ou mesmo praticamente invisíveis ("O cenário deve ajudar o espectador a preencher as referências que o texto propõe, mas deve também ajudá-lo a concentrar-se no texto"). 

O teatro, defendia, não acontece no palco, mas na imaginação do espectador. Para que esse milagre pudesse produzir-se, para que o espectador pudesse sentir-se no “estado de criação” (ou de hipnose, como muitos descreveram) sem o qual os seus espectáculos seriam intransmissíveis (ou então mera transmissão para receptores passivos, o que recusava de todo), apontava não à compreensão mas exactamente ao seu contrário. “Ver um espectáculo de Claude Régy era viver uma experiência, entrar numa sala onde nada que viesse do exterior penetrava, e aproximar o inatingível (...), esse momento em que a palavra, os corpos e o espaço são apenas um. Nenhum encenador deu tanto espaço ao silêncio entre as palavras, à imobilidade no movimento, à escuridão na luz”, escrevia Brigitte Salino esta tarde no Le Monde.

Também para ele, de resto, o teatro permaneceu até ao fim matéria insondável, como confessa a certa altura em Du Régal pour les Vautours (2013), o “filme de amor” em que o seu companheiro o registou em pleno labor: "Pergunto-me como pude criar um novo espectáculo ano após ano, durante 60 anos. Para mim, é um mistério absoluto.”

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