Política das ausências

Voz significa ação, participação, voto. Mas como pode a democracia, que vive da voz e para a voz, dar conta do silêncio?

Votar é crucial, assim como o é participar e protestar. Mas o que fazer quando aqueles que sofrem não falam, não participam, não protestam?

Esta ausência – de voz, de visibilidade, de participação – é um problema a que todas as democracias tentam dar resposta. E com razão. Não poder expressar o nosso descontentamento, sofrer sem que ninguém dê por isso, não poder fazer parte dos círculos de decisão que nos afetam é, sem margem para dúvidas, uma negação do que é viver em democracia.

A democracia vive da voz. Voz significa participação política. Dar voz aos cidadãos é uma das missões dos partidos políticos. O que é o nosso parlamento (do francês, parler) senão uma forma de dar voz aos cidadãos? De igual forma, os sistemas eleitorais são tecnologias que transformam a voz de cada cidadão em mandatos políticos. Voz significa ação, participação, voto. Mas como pode a democracia, que vive da voz e para a voz, dar conta do silêncio?

Isto exige responder a três problemas.

O primeiro é a nossa tendência para achar que o voto é transparente, que comunica com precisão e em detalhe os interesses e desejos dos eleitores. O que a pesquisa nos mostra, porém, é muito diferente. Os votos, ainda que expressos em eleições livres e competitivas, comunicam muito pouca informação sobre as preferências do eleitorado. Não por acaso, os nossos representantes recorrem cada vez mais a outras formas de auscultação da opinião pública (sondagens, focus groups, etc.) para perceber e moldar aquilo que os eleitores irão preferir na próxima eleição. O facto de que continuamos a falar em voto como “voz”, quando, na verdade, o voto o que faz é substituir as múltiplas vozes dos cidadãos por um único ato comunicativo, atesta bem a força ideológica que os modelos de democracia como voz (logos) continuam a exercer entre nós.

Outra coisa que a pesquisa mostra é a ambiguidade do voto. O voto não é nem suficientemente específico, nem estabelece uma relação positiva de representação. O voto só se refere a um partido ou candidato, com o qual estabelece uma relação representativa – não a políticas específicas e muito menos a medidas legislativas concretas. Muitas vezes, o voto não reflete qualquer preferência positiva: é, antes, sinal de habituação apática, da hegemonia de certas formas de pensar e de fazer, da pressão social dos que nos rodeiam, ou de resignação às escolhas disponíveis. A realidade é esta: o voto é um sinal. Como qualquer sinal, o voto é ambíguo. O voto, por si só, não chega para mandatar um deputado. Este tem de interpretar os votos que o elegeram e agir com base nessa interpretação – sempre falível, sempre susceptível de manipulação.

O segundo problema não é menos sério: como tornar um sistema representativo construído para ouvir a voz/voto dos cidadãos capaz de representar aqueles que não falam/votam? Uma solução, com popularidade crescente, é contabilizar os votos em branco. Por exemplo, através da inclusão de uma opção “nenhum dos partidos/candidatos acima indicados”. Mas o que fazer se os votos em branco ganharem a eleição? Em países como a Colômbia, esta é uma possibilidade real. Uma vitória dos votos em branco numa eleição a duas voltas despoleta uma nova eleição em que nenhum dos participantes que se candidataram à eleição inicial pode participar. Isto pode significar o fim de toda uma classe política. Uma outra é impor o sufrágio obrigatório, como no Brasil. Se se força as pessoas a votar, e estas optam por não pôr a cruzinha no boletim de voto, o silêncio da abstenção torna-se mais claro de compreender: expressa insatisfação. Mas insatisfação com o quê, ao certo? Com a situação do país em geral, ou com o próprio facto de que foram obrigados a ir votar?

O terceiro problema tem a ver com o próprio silêncio, que é muito difícil de representar. Como representar politicamente a ausência de voz se esta ausência é, muitas vezes, não apenas uma causa, mas um efeito de exclusões representativas? A representação política é muito mais do que mera responsividade. O que emerge da agregação dos boletins de voto é muito mais do que a sua soma; é um sujeito coletivo que já não fala a muitas vozes, mas que é, ele próprio, a voz do Povo. Representar a ausência de voz não passa simplesmente, ao contrário do que a sociologia das ausências sugere, por transformar essa ausência numa presença. Há ausências que são positivas e desejáveis, que nos permitem fazer coisas que doutra forma não seríamos capazes. Por exemplo, há décadas que a política do Sinn Féin passa por não enviar representantes para Westminster. A ausência destes representantes é uma posição de princípio de um partido que recusa a soberania inglesa na Irlanda do Norte. Forçar um partido como o Sinn Féin a transformar uma ausência numa presença (ocupando os lugares que prefere deixar vazios) é não só inviável, como seria profundamente anti-democrático.

Uma melhor alternativa é ensinar o sistema representativo a ouvir o silêncio. Como ouvir, por exemplo, a voz da “maioria silenciosa”? Da direita à esquerda, muitos foram aqueles que se propuseram agir em nome dela desde que Nixon cunhou a expressão em 1969. O perigo de usurpação é grande. A tentação de usá-la para dominar não é menor. Mas se não quisermos excluir todos aqueles que se mantêm silenciosos, há que tentar representá-los. Isto passa por várias coisas. Desde logo, reconhecer que falar em nome de uma “maioria silenciosa”, embora necessário, não é ciência certa: o silêncio pode quer dizer muitas coisas. Passa também por mobilizar os grupos silenciados. Representá-los, ainda que através de mecanismos não-eleitorais. E passa igualmente por reconhecer que a representação do silêncio pode exigir que se corrija a dinâmica institucional que ajudou a produzi-lo.

Quando muitos não votam, não protestam e não participam há que resistir à tentação de reduzir estas ausências a apatia ou consentimento. Há que lidar com elas, aceitando-as exatamente como são: ambíguas, sujeitas a manipulações, mas potencialmente radicando numa profunda exclusão social e política que urge combater.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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