Raridades sonoras portuguesas: do clássico ao electrónico

Na Escola Superior de Música de Lisboa, Manuel Fernando Marinho recuperou o Requiem à memória do maestro Pedro de Freitas Branco de Joly Braga Santos e Paulo Lourenço dirigiu o Adeus Algarve de Vasco Pearce de Azevedo. Mais de uma centena de músicos no palco da ESML. Horas depois, uma pessoa apenas no O’culto da Ajuda a deliciar o público com A Dama e o Unicórnio de António Sousa Dias

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A Dama e o Unicórnio — cantata profana para voz e electrónica em forma de ópera, obra de António Sousa Dias para voz e música electrónica, teve a sua personagem de palco desempenhada por Ana Brandão DR

Joly Braga Santos (1924-1988) compôs, aos quarenta anos, um Requiem à memória do maestro Pedro de Freitas Branco. Foi montado em 1964 com a Orquestra da Emissora Nacional e em 1989 com a Orquestra do Teatro Nacional de São Carlos; os programadores institucionais nunca mais se lembraram da obra. Coube agora a Manuel Fernando Marinho, no âmbito do seu mestrado na Escola Superior de Música de Lisboa, recuperar a partitura e dirigir a sua execução com os alunos da ESML (Orquestra e Coro sinfónico), reforçados por um coro amador criado para participar em eventos coral-sinfónicos (Coro do Festival Coral de Verão).

Trata-se de uma partitura de grande fôlego, que requer não só efectivos instrumentais alargados, como sete cantores solistas; nela convergem todas as linguagens musicais que o compositor havia até então assimilado, devidamente subordinadas ao sentido dramático de cada secção; a textura é variada e a orquestração invulgarmente rica, traindo uma vasta experiência sinfónica. A forma é idiossincrática, com adopção de apenas alguns dos textos típicos, e a terceira parte (Sequentia) a ocupar uma parcela desproporcionalmente grande da obra.

Apesar de um tratamento prosódico do texto nem sempre favorável à sua percepção, há momentos especialmente inspirados (nomeadamente o Kyrie e a secção final, Agnus dei - Communio) e o interesse musical está bem distribuído ao longo da partitura. Na execução em apreço, geralmente conseguida, houve alguma dificuldade em fazer ouvir as vozes sobre o ribombar da orquestra e também algum desequilíbrio no elenco, expectável numa produção escolar. O compositor na sua escrita privilegiou, entre os cantores solistas, as vozes de soprano; ficaram assim patentes as qualidades tímbricas e técnicas das jovens Teresa Duarte e Beatriz Ventura, esta última num registo vocal invulgarmente agudo.

A segunda parte do concerto, montada sob a experiente batuta de Paulo Lourenço, foi preenchida por uma peça recente (2016) de Vasco Pearce de Azevedo (n. 1961), Adeus Algarve, baseada numa melodia do seu bisavô António Revelo Neves, sobre versos de Cândido Guerreiro. A melodia, singela e contagiante, em ritmo dançante, acaba por ser pretexto para um notável trabalho de harmonização tonal e de contraponto orquestral, que a colora e amplia o seu impacto estético. Seguiu-se no programa uma obra de Ralph Vaughan Williams (1872-1958), Five Mystical Songs, sobre poemas de George Herbert. O barítono solista foi o jovem Francisco Henriques, que demonstrou excepcional maturidade como intérprete na clareza da modelação frásica e na intimidade com a expressão poética, a par de grande potencial como cantor, com uma frescura vocal alheia aos tiques operáticos habituais.

Se neste concerto o palco transbordava com mais de uma centena de músicos, no O'culto da Ajuda, horas mais tarde, bastou uma pessoa em palco para que o público presente ficasse deliciado. O programa foi assim anunciado: A Dama e o Unicórnio — cantata profana para voz e electrónica em forma de ópera. O subtítulo é irónico, porque nem se cantou coisa alguma, nem a ópera é, na verdade, uma forma; contudo, o subtítulo contém grãos de verdade, pois o centro da peça é uma vocalidade, cuja extensão corporal se exprime cenicamente. Em concreto, trata-se de uma obra de António de Sousa Dias (n. 1959), composta em 2009-2013, para voz e música electrónica, encenada com recurso a um estrado, adereços e imagens projectadas. Insere-se numa tradição de declamação musicalmente acompanhada que remonta ao recitativo de salão do século XIX, ecoado por António Villaret, e tem vindo a ser sucessivamente reinventada, mais recentemente pela Lisbon Poetry Orchestra.

O ciclo poético, belíssimo, com tonalidades eróticas, que aqui ocupa o palco através da voz, é de Maria Teresa Horta, e dá o título à obra. É inspirado nas seis tapeçarias La Dame à la Licorne, de c. 1500, conservadas no Museu de Cluny em Paris. Mas, sendo a palavra poética emitida através de um microfone de lapela, e ficando assim dissociada do movimento corporal de quem a diz, ela ganha uma imaterialidade fantasmagórica, que corresponde à fantasmagoria do som electrónico; o qual, simetricamente, é investido de materialidade pela dinâmica da concretização espacial.

O espectáculo ao vivo tem assim uma profundidade dupla, a do palco, onde se movimenta a actriz com gestos parcos e mesurados, e o do espaço acústico, vivo e cambiante, do enquadramento sonoro. Ao mesmo tempo, somos mergulhados num ambiente onírico feito de palavras e de sonoridades estranhas variegadas — do ataque cavo e ecoante às cintilações de campainha —, escolhidas e cerzidas com tacto, sem descritivismo mas com oblíqua adequação ao texto pelo compositor, também responsável pela programação e pela concepção visual (com assistência de Daniel Worm d'Assumpção no desenho de luz). A personagem em palco foi desempenhada por Ana Brandão de maneira inexcedivelmente precisa e contida, enquanto a sua impecável dicção, em voz suave, fez desfilar os poemas em calmaria encantatória e subversiva.

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