O nacionalismo espanhol contra a Europa

Até os mais incrédulos hoje já vacilam e começam a achar que os empolgados discursos oficiais sobre uma Espanha onde a separação entre o poder político e o judicial é totalmente respeitada não passam de uma piedosa ilusão e de mera propaganda.

Após a rápida leitura de algumas notícias saídas na imprensa nacional e internacional sobre a decisão de que o Tribunal de Justiça da União Europeia considerou “que o independentista catalão Oriol Junqueras deveria ter sido reconhecido como eurodeputado e gozado da respectiva imunidade parlamentar desde a proclamação dos resultados das eleições europeias, a 26 de Maio” (citação retirada do jornal PÚBLICO), tornou-se impossível continuar a acreditar na independência dos tribunais espanhóis. Creio até que os mais incrédulos hoje já vacilam e começam a achar que os empolgados discursos oficiais do Estado espanhol e de todos quantos a ele se rendem sobre uma Espanha onde a separação entre o poder político e o judicial é totalmente respeitada (como em qualquer verdadeira democracia) não passam de uma piedosa ilusão e de mera propaganda.

Uma das mais fortes razões utilizadas pelo nacionalismo espanhol para vituperar o independentismo catalão, defendendo a impoluta acção de Espanha contra a Catalunha, baseou-se sempre nas manifestações de apoio da União Europeia e da maioria dos deputados do Parlamento Europeu, que se manifestaram, de forma permanente, desfavoráveis aos argumentos catalães, impedindo, deste modo, que os políticos encarcerados fossem considerados presos políticos ou que, por exemplo, Oriol Junqueras, entre outros, fosse deputado.

A força espanhola (não esqueçamos que Espanha, apesar de ter recebido avultadíssimos empréstimos para resgatar a sua banca durante a última grande crise financeira, se furtou sempre à humilhação pela qual passaram a Grécia, Irlanda e Portugal) tem conseguido controlar os dirigentes europeus. Mas eis que, desta vez, o Tribunal de Justiça da União Europeia não cedeu aos superiores interesses de Espanha. E pese embora as truculentas e ameaçadoras palavras de Josep Borrell contra o que ele designou os “tribunais flamengos”, que prudentemente aguardaram esta sentença antes de se pronunciarem sobre a reactivação do mandado de detenção europeu contra Puigdemont, ao contrário da vontade do substituto de Federica Mogherini, a justiça seguiu o seu curso e contradisse os desejos do nosso estado vizinho considerando que, como vimos, o mencionado Oriol Junqueras tinha direito a imunidade (decisão que arrastará o exilado ex-presidente da Catalunha).

Curiosamente, agora, começaram a ouvir-se vozes contra a Europa. O colunista do jornal El Mundo, Federico Jiménez Losantos, sem meias medidas, escreveu um artigo de indispensável leitura para quem quiser perceber o que pensa a Espanha ‘profunda’, intitulado “Europa como problema”; e jornais como La Razón  imprimiram em editorial ideias destinadas a atear ainda mais os fogos do incendiado espanholismo: após a decisão do TJUE fala-se de um atentado contra a independência de Espanha e da sua justiça, para concluir, sibilinamente, dizendo que “uma boa parte da sociedade espanhola não entende o que está a acontecer nem concorda”, pelo que “os actuais arquitectos da Europa Unida, a mesma que viu a deserção do Reino Unido e o avanço de populismos desagregadores”, deverão fazer uma profunda reflexão.

Ameaça pueril? Ou será que ainda estão bem vivas as palavras de Blasco Ibáñez, publicadas no seu romance La catedral, de 1903, no qual o ex-seminarista Gabriel, residente em Paris, “recordava agora com vergonha a sua ignorância espanhola, aquela prosopopeia castelhana, mantida por mentirosas leituras, que o fizeram acreditar que Espanha era o primeiro país do mundo, o povo mais valente e mais nobre, e as restantes nações uma espécie de rebanhos tristes, criados por Deus para ser vítimas da heresia e levar enormes coças cada vez que tentavam enfrentar este país privilegiado que come mal e bebe pouco, mas tem os primeiros santos e os maiores capitães da cristandade” (tradução minha)?

Que assim pensam todos os dirigentes do Vox e o seu eleitorado não duvido. O problema é que uma parte dos leitores de La Razón e do El Mundo votam num campo político de direita menos extrema e até de centro.

Deste modo, ou a mais clarividente e lúcida classe política espanhola se demarca destas posições, ou não poderemos deixar de recear pelos destinos de Espanha e da própria Europa.

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