Venham os robots: muito do que fazemos ofende a inteligência do Homo sapiens

Não me repugna nada um mundo em que as máquinas façam tudo o que não exija o que é especificamente humano, como o cuidado mútuo e o usufruto de emoções complexas. O que realmente deve preocupar-nos é a criação de rendimento e não propriamente a criação de trabalho.

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LUSA/FRANCK ROBICHON

Pelo menos desde que se inventou a máquina a vapor que andamos a discutir o fim do trabalho para os humanos. Trata-se tão só de uma partícula da angústia do progresso, mas o medo e o uncanny valley (o “vale da estranheza” que se funda entre humanos e tecnologia) não tem nada de novo na história da ciência. É sempre assim quando surge algo de novo na civilização: os medos, os preconceitos, a negligência das probabilidades, das vacinas aos antibióticos, dos robots à edição genética, dos exoesqueletos neuro-robóticos aos nano-robots farmacológicos. Vive-se uma situação de precaução indigente, que muitas vezes tem por único fundamento um conjunto de coisas muito más, mas jamais verificadas.

Claro que as máquinas — dos vapores à internet, passando pela mecânica simples e culminando nos autómatos — têm roubado milhões de postos de trabalho em várias áreas (sobretudo na agricultura, indústria mecânica e tratamento de resíduos). Têm criado muitos outros, também, boa parte dos quais não poderíamos sequer imaginar há uma dúzia de anos. A questão é: o trabalho que as máquinas nos roubam é mesmo trabalho que gostaríamos de continuar a fazer?

A verdade é que grande parte do trabalho que fazemos ofende profundamente a inteligência do Homo sapiens. Para o bem e para o mal, detemos a teoria da mente mais complexa de todos os reinos biológicos conhecidos, e a nossa capacidade emocional, criativa e espiritual não tem precedentes (tudo isto tem bases biológicas evolutivas e é altamente improvável que possa, para já, ser computado). Já para não dizer que muito do trabalho que fazemos é perigoso, esgotante, maçador e, das mais variadas formas, compromete a nossa saúde e a nossa segurança.

Na Europa, estudos que apontam percentagens catastróficas de insatisfação com o trabalho, incapacidade de articular a vida profissional e familiar e problemas de saúde física e psíquica relacionados com o trabalho multiplicam-se. Paradoxalmente, há quem ache profundamente ameaçador que os robots passem a trabalhar por nós. Esta suposta ameaça deve ser olhada de forma mais objectiva: é evidente que o trabalho pode ser uma parte importante do desenvolvimento da nossa personalidade e realização pessoal. Mas não o é para a maioria das pessoas, e não será única forma de nos realizarmos, sobretudo se significar um nível elevado de subordinação, parca autonomia técnica, desgaste físico intenso, horas no trânsito e trajectos perigosos e a impossibilidade prática do lazer de qualidade.

Pessoalmente, não me repugna nada um mundo em que as máquinas façam tudo o que não exija o que é especificamente humano, como o cuidado mútuo e o usufruto de emoções complexas. O que realmente deve preocupar-nos é a criação de rendimento e não propriamente a criação de trabalho. Para tal já existem muitas respostas sérias, que devem começar a ser interiorizadas pelas políticas públicas.

Somos o exemplar do género homo mais saudável, mais longevo e mais realizado que habitou o planeta Terra. Demorámos muito a erguer-nos e libertar os membros superiores para podermos fazer tudo o que hoje fazemos. Parece que, graças aos robots, vamos também ficar com os braços mais livres e assim poderemos focar-nos em trabalhar sobretudo a partir do cérebro. É uma oportunidade que não devemos desperdiçar.

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