Tudo falhou num femicídio em 2017. Durante oito anos, até a comunidade desvalorizou as agressões

Ministério Público, Saúde, GNR e a própria Rede Nacional de Apoio à Vítima de Violência Doméstica não foram capazes “de articular e transmitir a informação”. Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica afirma que, neste caso de 2017, “a família, a comunidade e as instituições foram fortemente influenciadas pelo alcoolismo de ambos”.

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Daniel Rocha

Em Julho de 2017 o cadáver da mulher de 50 anos foi encontrado em estado de putrefacção por cima da cama do seu quarto. Ao lado, na mesa de cabeceira, um papel assinado pelo homicida: “Eu não queria fazer isto, eu fui para o monte acabar [com] a minha vida.” A 100 metros da casa lá estava o corpo do homem de 55 anos enforcado numa árvore. Análises revelaram que a mulher tinha uma taxa de alcoolemia no sangue de 3,17 gramas por litro. Verificaram-se também lesões traumáticas na face, tórax, região lombar, membro superior esquerdo e em ambos os membros inferiores – que não foram a causa da morte.

Podia este caso de femicídio ter sido evitado? “O sistema de intervenção, como um todo, falhou, não foi capaz de articular e transmitir a informação entre os vários sectores, de compreender e interpretar as especificidades, os receios, as inseguranças, as hesitações e os não ditos da vítima, de os ler no quadro da grande fragilidade e dependência alcoólica”, afirma o oitavo relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica, grupo multidisciplinar que examina processos judiciais de homicídios em contexto de violência doméstica para analisar o que falhou, coordenado pelo procurador Rui do Carmo. “Também a comunidade local parece ter desistido de a proteger”, acrescentam.

Foram oito anos, entre 2009 e 2017, de contactos com instituições estatais de cinco áreas diferentes e da própria Rede Nacional de Apoio à Vítima de Violência Doméstica (RNAVVD) “que procederam à recolha de dados, mas cujas intervenções se caracterizaram por serem meramente reactivas, parcelares e descontinuadas e que podem ter constituído oportunidades perdidas de intervenção”.

Em 2009 a vítima recorreu aos serviços de saúde por causa de crises depressivas e antecedentes de alcoolismo. A partir de 2010 repetiram-se os casos de agressões, elencados no documento: traumatismo, equimoses, edemas, quedas, fracturas. Em Junho de 2014 foi feita a primeira participação por violência doméstica à GNR e a vítima seria atendida pelos serviços da RNAVVD. Em Novembro de 2015 fez segunda participação, em Junho de 2016 uma terceira. Nesta última, por causa de agressões e de ameaças de morte, foi accionado um pedido de acolhimento.

A estrutura de atendimento da RNAVVD encaminhou a mulher para uma entidade de apoio às dependências, por causa do consumo excessivo de álcool, mas “não promoveu o acompanhamento continuado” em relação ao contexto de violência doméstica”, que “com alta probabilidade se manteria”, “tendo em conta a sua não colaboração na investigação e o não querer sair da casa onde morava”.

A saúde “limitou-se ao tratamento sintomático e à reparação das lesões físicas e psicológicas”, não procurando averiguar se decorriam de violência doméstica. Mais, no único caso em que há registo de violência doméstica “não foi desencadeada qualquer medida no sentido de precaver a repetição de novos acontecimentos”.

Embora com conhecimento da gravidade de uma situação que desencadeou, em 2016, um pedido de acolhimento, a Segurança Social considerou a vítima estabilizada quando foi acolhida em casa de uma irmã, e não fez mais nada para averiguar a “(des)continuidade das agressões e das necessidades de protecção, apoio e assistência” da vítima, que “passados dois meses, voltou à casa onde residia” com o agressor. E o Ministério Público e a GNR “tiveram uma acção claramente insuficiente” para fazer cessar o ciclo de violência e “demitiram-se, do ponto de vista criminal”, de desencadear “uma efectiva investigação e recolha de prova” – aliás, as acções destes dois organismos limitaram-se “a seguir uma actuação formal, responsabilizando as hesitações, os recuos e a não-colaboração da vítima pelo arquivamento dos inquéritos, e não tomando a iniciativa de identificar outros meios de prova”.

Já o MP arquivou o inquérito por “insuficiência de prova” e não comunicou a situação às estruturas da RNAVVD para garantir o seu acompanhamento quando se tinha avaliado como risco grave para a sua vida. A equipa de avaliação também afirma que “a informação recolhida nesta análise retrospectiva permitiu conhecer aspectos relevantes do contexto sociocultural, no qual a violência doméstica parece ser entendida, não raramente, como uma questão íntima do casal, silenciada e tacitamente aceite”.

“Os dados constantes dos inquéritos e os depoimentos prestados pelas irmãs [do casal] (…) permitem afirmar que os comportamentos de violência doméstica (…) já eram do conhecimento de algumas pessoas com as quais tinham relações de vizinhança e proximidade pessoal. A família, a comunidade e as instituições foram fortemente influenciadas pelo alcoolismo de ambos na forma como olharam” para os conflitos e violência, escrevem.

Uma das tarefas desta equipa é deixar recomendações. Neste relatório sugere à rede e Segurança Social que “promovam o acompanhamento continuado e a monitorização das vítimas que se encontram sinalizadas num contexto de violência doméstica, independentemente de terem apresentado denúncia criminal”, averiguando se houve continuidade nas agressões e se é necessário apoio e protecção. A outra recomendação é que o Governo crie com urgência o manual de actuação para os órgãos de polícia criminal nas 72 horas a seguir à denúncia para protecção e apoio à vítima e recolha da prova.

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