Natal dos simples

O Natal dos simples é o melhor que se pode fazer nestes dias, não proclamar grandes e hipócritas vontades para o mundo, mas saber que fomos parte da construção de uma vida melhor para nós e para aqueles que connosco partilham o mundo.

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Joanna Kosinska/Unsplash

Sempre achei muito constrangedor o circo caridoso em torno da época natalícia, como se o mundo acordasse para os seus problemas uma vez por ano, esfregasse os olhos, de forma a enxergar por uma vez a realidade. Sempre me deram repulsa os desejos de paz, amor e saúde repetidos até à exaustão, esvaziados de significado concreto, desejos que fazem lembrar os concursos para miss mundo. Todos os anos, durante toda a vida, insiste-se que o Natal é uma época de amor, de compreensão e de um olhar mais profundo para o outro, como que de uma necessidade de muitos para justificar alguma coisa, para compensar a indiferença com que vivem o resto do ano. Não, o Natal não é “quando o homem quiser”, o Natal é em Dezembro, mas a vida, essa, corre durante todos os dias.

Já sabemos que é mais uma desculpa para desatarmos às compras, de gastarmos o que não sobrou do resto do ano, mas não é por aí que quero ir. O consumismo não é exclusivo do Natal, nem tão pouco de nenhuma data festiva, já o é durante o ano todo, já não é preciso uma data específica para sucumbirmos às manhas do mercado. Mas é no Natal dos simples que reside a realidade, uma realidade concreta e palpável de uma vida de trabalho que não corresponde a nada de especial. Não pensem que me refiro ao Natal dos simples como o Natal dos pobres, antes um Natal normal, como o festejo de uma época festiva, onde se reúne a família para festejar a nascimento de Jesus, para quem acredita, ou simplesmente para reunir aqueles de quem gostamos para celebrar a vida. Uma reunião onde não sentimos a necessidade de amar mais, ou de desejar mais, ou de querer mais do que aquilo que amamos e quisemos durante o resto do ano.

Não podemos agora, só porque estamos aconchegados à lareira no frio de Dezembro, desejar a paz se passamos o ano a fazer a guerra, não podemos subitamente acreditar que um gesto bom, um alimento qualquer depositado numa caixa qualquer à saída de um qualquer supermercado vá fazer realmente diferença na vida de alguém, na vida dos muitos que não têm casa, mas também dos que, tendo, não possuem o suficiente para a encher de alegria. É uma mudança de atitude que se pretende, e não um gesto caridoso que preenche mais quem dá do que a quem recebe.

Somos seres complicados, nós os seres humanos, acreditamos na magia do Natal ao mesmo tempo que nos esquecemos constantemente que vivemos em comunidade durante todo o ano.

É suposto o ser humano ser um ser social, concretizar-se com o outro e assim realizar-se, mas os tempos modernos têm revelado outra faceta, a do ser individual, que se relaciona entre si de acordo com as leis do mercado, o que faz do Natal uma representação, ou uma projecção de um mundo que sabemos que deveria ter lugar, mas não passa, neste momento, de uma ilusão. Projectamos no Natal tudo aquilo que não fizemos durante o resto do ano, durante o resto da vida, porque esta desenvolve-se todos os dias, das mais variadas formas e, enquanto isso, andamos dobrados, com os olhos postos no chão para não perdermos um único passo que damos, para não nos enganarmos no caminho, sem nos darmos conta de quem caminha ao nosso lado, sem termos a pretensa de ser uma comunidade.

O Natal dos simples é o melhor que se pode fazer nestes dias, não proclamar grandes e hipócritas vontades para o mundo, mas saber que fomos parte da construção de uma vida melhor para nós e para aqueles que connosco partilham o mundo.

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