Mais verba, mais responsabilidade – estará o SNS preparado?

Cabe agora ao Ministério da Saúde responder a estes desafios, aliviado que fica o garrote orçamental dos últimos anos no sector da Saúde.

O OE 2020 anuncia o reforço do Serviço Nacional de Saúde, traduzido, segundo o documento, numa maior transferência de verba para o SNS (superior à despesa do ano de 2019, somando as dívidas geradas pelos hospitais EPE).

A necessidade de reforço orçamental era evidente desde há alguns anos, uma vez que a criação de pagamentos em atraso pelos hospitais traduzia uma despesa efetiva mesmo que não estivesse no orçamento inicial.

Com um orçamento inicial que mais do que cobre o que tem sido tradicionalmente a geração de dívida, dá em 2020 motivos para que esta tradição seja for fim quebrada.

Há, por isso, uma enorme responsabilidade sobre a gestão hospitalar pública neste ponto, e tal deverá ser explicitado e acompanhado durante o ano de 2020.

É mesmo um dos elementos centrais para que de futuro se possa ter uma boa gestão no SNS, e com isso assegurar os objetivos assistenciais e de saúde à população. Apesar de ter havido um esforço para evitar geração de dívida, não se notaram resultados dele, pelo que é necessário (ainda) maior empenho, ou procura de novos mecanismos de gestão. Aliás, nota-se uma menor atenção neste OE, face ao OE 2019, à Estrutura de Missão para a Sustentabilidade do Programa Orçamental da Saúde (já agora, os relatórios desta Estrutura de Missão deveriam ser publicamente conhecidos).

Note-se que todo o resto do Serviço Nacional de Saúde (além dos hospitais) não gera esse problema de criação recorrente de pagamentos em atraso.

O crescimento da despesa com o Serviço Nacional de Saúde, passado e futuro, pode dividir-se em três grandes tipos: aumento do que pode fazer, aumento de custos (salários e preços) e aumento da cobertura (maiores comparticipações, por exemplo).

A forma como será usado o orçamento nestas três componentes é essencial para perceber os efeitos que possa ter. É mais importante que o aumento de orçamento seja utilizado num reforço da capacidade de intervenção do SNS do que em aumentos de preços nos serviços que o SNS adquire (incluindo aqui convenções e medicamentos, por exemplo).

Embora normalmente esquecido, será de começar a planear uma revisão, com aumento, das comparticipações do SNS no campo dos medicamentos, como forma de proteção das famílias mais desfavorecidas, com doentes crónicos e de idade avançada. Essa revisão será mais importante do que “a eliminação faseada das taxas moderadoras nas consultas” dos médicos de família, que pouca expressão tem nos orçamentos das famílias quando comparada com a despesa em medicamentos.

Há, no OE 2020, investimentos em equipamentos, com destaque para novos hospitais de substituição de antigas instalações, bem como verbas para outras intervenções em equipamentos, distribuídas por vários anos. É pelo menos sinal de que alguma recuperação de equipamentos e modernização poderá ter lugar. Mais uma vez, à disponibilidade destas verbas deverão corresponder decisões de investimento com base numa racionalidade de rede do Serviço Nacional de Saúde (e não de oportunismo de anúncio político, como por vezes sucede).

A exigência de apresentação e justificação técnica, com escrutínio público, de planos de investimento deverá estar presente como parte desse processo. É também por aqui que a qualidade da gestão do Serviço Nacional de Saúde se terá que afirmar.

Inevitavelmente, o OE 2020 volta a falar nas iniciativas recorrentes de melhoria de eficiência (compras públicas, sistemas de informação, melhorias de gestão), mas sem haver a criação de instrumentos fiáveis e abrangentes na contabilidade de custos das instituições do SNS (nomeadamente, em todos os hospitais), irá ficar-se aquém das melhorias possíveis, que teriam reflexos positivos na capacidade assistencial à população, nos custos de funcionamento do SNS e até na satisfação e motivação dos profissionais.

O discurso apresentado está em linha com estas ideias, que não são novas no Ministério da Saúde. Contudo, a forma como na prática se irá concretizar é que levanta dúvidas, face à experiência passada (e que é transversal a vários governos). Sem instrumentos de gestão não haverá boa gestão. Sem boa gestão, não haverá assistência à população tão boa como poderia ser.

Aqui, um elemento central sempre ausente é que mecanismos são previstos para rever ou eliminar as situações de fraco desempenho de gestão. Fechar equipamentos não será possível em muitos casos, por isso outros instrumentos têm que ser definidos. E se é verdade que esse detalhe não terá necessariamente lugar num relatório do Orçamento do Estado, a verdade é que esse detalhe é mais importante do que muitos outros que são apresentados no mesmo documento.

No que se refere aos profissionais de saúde, a preocupação com o absentismo surge destacada, embora o problema a resolver seja mais profundo, cruzando modelos e níveis de remuneração, motivação dada pela perspectiva de percurso profissional, condições de trabalho, âmbito de atividades das várias profissões de saúde, etc. A necessidade de uma politica de recursos humanos coerente, em que a autonomia de gestão das instituições é relevante, bem como a respectiva responsabilização, mas não pode deixar de estar enquadrada por uma visão global do SNS.

Por fim, as parcerias público-privadas (PPP), em que a novidade para 2020 é o fim (desde Setembro de 2019) da parceria para a gestão clinica do Hospital de Braga, e a previsão para os anos subsequentes assume que não serão renovadas as PPP para a gestão das restantes unidades hospitalares neste modelo.

O reforço orçamental para 2020 permite também que se introduzam mudanças no SNS que o tornem mais ajustado ao que é necessário – o aumento das doenças crónicas tem desafios organizacionais que vão além do campo orçamental. Cabe agora ao Ministério da Saúde responder a esses desafios, aliviado que fica o garrote orçamental dos últimos anos.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico 

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