“Quem afundou o Titanic? Iceberg, um judeu!”

Emerge cada vez com mais força e violência na Europa e nos EUA o velho-novo anti-semitismo, ocidental, nacionalista e supremacista.

Esta piada irónica [no título], da autoria do músico francês Serge Gainsbourg, é, na verdade, uma denúncia amarga da utilização do judeu como bode expiatório para tudo o que corre mal, uma das múltiplas manifestações de anti-semitismo.

No passado dia 3 de Dezembro, o Parlamento francês aprovou por escassa maioria e em ambiente polémico uma resolução contra o anti-semitismo, adoptando a definição formulada pela IHRA – Aliança Internacional para a Memória do Holocausto: “O anti-semitismo é uma determinada percepção dos judeus, que se pode manifestar pelo ódio contra eles. As manifestações retóricas e físicas do anti-semitismo visam indivíduos judeus ou não e/ou os seus bens, instituições comunitárias e locais de culto.”

O que fez estalar a polémica não é tanto a definição em si mesma, aliás bastante vaga, mas sim os exemplos que a ilustram, nomeadamente, negar o direito à autodeterminação do povo judeu de ter o seu próprio Estado considerado como um empreendimento racista; fazer comparações entre a política israelita e a dos nazis ou ainda responsabilizar os judeus colectivamente pelas políticas de Israel. Estes exemplos motivaram a condenação de mais de 100 intelectuais de vários países, muitos dos quais judeus, argumentando que esta resolução pode acabar por censurar a crítica legítima às políticas israelitas, sem, no entanto, apresentar minimamente soluções para lutar contra o anti-semitismo e o racismo.

Pessoalmente, nada tenho contra a definição da IHRA, incluindo os seus exemplos ilustrativos. Aprovada em 2016, sem consequências jurídicas e partilhada por numerosos países-membros, não tem impedido a crítica ao Estado de Israel. No entanto, as definições, ao procurarem encaixar uma realidade normalmente muito mais complexa do que a descrita, acabam por ser ou demasiado vagas ou demasiado limitativas.

O anti-semitismo é um claro exemplo disso e, na verdade, não cabe dentro de uma definição estática. O carácter cíclico da perseguição e do ódio antijudaico, a sua longevidade, a constância das perseguições, a força e a extensão desse ódio, com todos os mitos e fantasmas que ele não deixa de suscitar, fazem do anti-semitismo um fenómeno que é muito mais do que uma das variantes do racismo. Um fenómeno que se foi metamorfoseando ao longo da História: na Antiguidade pagã e clássica manifestava-se contra o Deus único: “Eles acusam-nos do crime de não adorarmos os mesmos deuses que os outros povos”, nota o historiador judeu e romano Flávio Josefo. Já na cristandade medieval, o antijudaísmo manifesta-se contra o “povo deicida”: o judeu errante, testemunha eterna do crime de deicídio; o judeu usurário, pactuando com o demónio, perpetrador do assassínio ritual e conspirando para dominar o mundo.

Na Idade Moderna surge outro tipo de anti-semitismo de características raciais e xenófobas. O judeu é o estrangeiro e o traidor em potência, tal como l’affaire Dreyfus o demonstra, e com o estrangeiro não se partilha a pátria. É neste final do século XIX que emerge o nacionalismo judaico, tomando forma o sonho antigo de um lar nacional judaico que 50 anos depois fundará o Estado de Israel.

O nazismo é, uns anos mais tarde, “uma ruptura da civilização”, como a chanceler Merkel acaba de afirmar em Auschwitz. Em 1937, Goebbels sentenciava: “O judeu... eis o inimigo universal, o destruidor das civilizações, o parasita dos povos, o filho do caos, a incarnação do mal, o fermento da decomposição, o demónio que provoca a degenerescência da humanidade”, e, no ano seguinte, o jornal nazi Der Stürmer prosseguia: “A limpeza e a higiene obrigam-nos a torná-los inofensivos, exterminando-os.” Pela primeira vez na história humana, iria ser levada a cabo uma tentativa programada de extermínio total de uma parte da espécie humana.

No pós-guerra e no rescaldo do Holocausto, as características e a dimensão da catástrofe remeteram o anti-semitismo ao silêncio. Mas, pouco a pouco, acompanhando o enfraquecimento e o descrédito das instituições democráticas, multiplicam-se as manifestações anti-semitas violentas que se vão tornando perigosamente banais.

Como se define actualmente o anti-semitismo? Será que se exprime essencialmente sob a capa do anti-sionismo? Não tenho dúvida que muito do anti-sionismo vigente é também anti-semita; que se manifesta claramente no mundo árabe, na Europa e nos EUA por razões diferentes e com argumentos diferentes, mas sempre acompanhado por um discurso legitimador e mobilizador em nome da defesa dos direitos do povo palestiniano, e em nome do combate ao sionismo identificado com o racismo e o colonialismo.

Mas seria um erro considerar que esta é hoje a única ameaça. Emerge cada vez com mais força e violência na Europa e nos EUA o velho-novo anti-semitismo, ocidental, nacionalista e supremacista, e não o mencionar é não entender ou não querer entender que a crise das instituições democráticas, a globalização e o receio da diluição da identidade colectiva nacional favorece a reacção nacionalista, xenófoba e a procura de um bode expiatório. “O Holocausto nunca existiu. Os judeus estão na origem de todos os problemas”, afirmou Stephan Balliet, o terrorista que tentou recentemente um massacre na Sinagoga de Halle, na Alemanha.

Portugal acaba de integrar a IHRA como membro de pleno direito, o que é uma boa notícia. Questionado sobre se iria propor à Assembleia da República uma votação idêntica à da França, o MNE não vê a necessidade. Pessoalmente, concordo, mas espero que, integrando a IHRA, o Estado português possa dar um contributo mais significativo ao desenvolvimento do trabalho e ao esforço da sociedade civil ao longo dos anos pela memória, conhecimento e responsabilização social a que os ensinamentos do Holocausto nos obrigam.

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