A Casa da Praia

Esta casa surge da necessidade de fugir do hospital e do ambiente psiquiátrico e criar um lugar com o qual todos nos possamos identificar: a nossa casa. E na nossa casa, a nossa família, mas desta vez como deve ser, com um amor incondicional.

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Aaron Burden/Unsplash

Escolhida pelo Conselho Nacional de Educação como um dos oito exemplos “inspiradores de educação, porque ali nunca ninguém é deixado para trás”, a Casa da Praia é, literalmente, uma casa.

Uma pequena vivenda revestida a azulejos azul-esverdeado entre um piso térreo e um primeiro andar, entalada a meio da Travessa da Praia, em Alcântara, entre blocos e prédios de apartamentos, a Casa da Praia é uma das últimas casas quando devia ser uma entre muitas. As suas singularidade e resistência a nível urbanístico espelham a singularidade e resistência a nível educacional.

Fundada em 1975 pelo Dr. João dos Santos, médico, psicanalista e pedagogo, e instituída como Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) desde 1992, a Casa da Praia procura ser um prolongamento da escola sem por isso querer substituir a escola. Mas as suas pedagogias, aplicadas a crianças e pré-adolescentes, seriam muito bem vindas na escola, ou não fosse a Casa da Praia um lugar onde todos os comportamentos são aceites, fruto da história de vida de cada criança.

Porque esta casa é uma família duas vezes por semana, de manhã ou à tarde, para onde crianças referenciadas por escolas, assistentes sociais, hospitais, entre outros, vão para ter o abraço, a voz amiga, o carinho e, ao mesmo tempo, a liberdade que nunca tiveram. Liberdade para expressar o passado e o presente das suas vidas, liberdade para criar, pintar, dançar e tocar, descobrir, sempre sob o olhar atento de professores de ensino especial, psicólogos e terapeutas.

Num ambiente seguro, familiar, a criança pode deitar tudo cá para fora e descobrir o que de errado aconteceu, e compreender o que de errado aconteceu: a razão dos traumas, a aceitação dos traumas, o ultrapassar dos traumas. E ao criar, ao expressar, ao ser aceite nos seus movimentos e acções, recupera a confiança, deixa de ter medo e cresce.

Esta casa surge da necessidade de fugir do hospital e do ambiente psiquiátrico e criar um lugar com o qual todos nos possamos identificar: a nossa casa. E na nossa casa, a nossa família, mas desta vez como deve ser, com um amor incondicional.

A equipa multidisciplinar procura desde logo conhecer a criança, a casa de onde vem (quando há uma casa), a família, o contexto social, construindo uma história de modo a identificar necessidades e estabelecer estratégias, estratégias essas discutidas regularmente entre a equipa em reuniões clínicas.

Os passos seguintes são elementares: a culpa nunca é da criança. Nem de ninguém. Nesta casa, toda a equipa tem perfeita consciência disto. Longe da rigidez e dos horários do contexto escolar, aqui todos são pais, mães, amigos, psicólogos e professores, desde a senhora que nos abre a porta e faz as refeições aos professores e terapeutas propriamente ditos.

E, como uma família, estão sempre presentes. A Casa da Praia é uma família. Por isso, a sua excelência. Por isso, o seu exemplo, ao mesmo tempo óbvio, simples. Afundada na Travessa da Praia entre água, sereias, mar, areia e peixes, a Casa da Praia viu os prédios crescer e a casa encolher, por falta de espaço, na sombra, acotovelando-se à esquerda e à direita contra o betão armado e o cimento.

As salas não são salas, são quartos onde os meninos perdidos se encontram na Terra do Nunca das suas vidas, mudando as suas vidas, salvando as suas vidas. Com profissionais a trabalhar de corpo e alma em nome de uma causa maior, o trabalho pode ser inglório ou não estivesse este exemplo maior de educação sempre aberto ao apoio da sociedade em redor.

E, no entanto, basta ligar a televisão para perceber a torrente de problemas comportamentais todos os dias em todas as escolas portuguesas entre professores, alunos e encarregados de educação. 

Ironia do destino, a Casa da Praia, apesar de não ter uma varinha de condão, tem por certo a solução para a maior parte destes problemas. E pudessem os seus profissionais formar professores e pessoal auxiliar e, estou convencido, dificilmente lhe faltariam os meios para continuar a ajudar, a resgatar, a salvar, esta população crescente de crianças desestruturadas, esta população crescente de famílias desestruturadas. 

Partilho e difundo, através destas palavras, o exemplo de quem dedica as suas vidas às vidas destas crianças. Para que no futuro não haja apenas uma Casa da Praia, mas muitas Casas da Praia, em cada rua, em cada escola, em cada casa, em cada um de nós.
 

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