Investigadores à beira de um ataque de nervos

O “pleno emprego científico” continua uma miragem em Portugal. É uma situação de navegação à vista, e mesmo assim atulhada de naufrágios, que urge denunciar e corrigir.

No decurso dos últimos anos, o Governo, através do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, tem vindo a definir e implementar políticas mais substanciais que visam normalizar a situação dos investigadores de ciência em Portugal. Reconheceu-se a urgência em terminar com a precariedade num dos sectores onde subsistem índices insustentáveis de vínculos precários e com direitos sociais muito limitados. No essencial, o Governo anunciou e começou a concretizar o fim do regime de bolsas de pós-doutoramento, fazendo-as substituir por contratos de trabalho a prazo.

Os propósitos são muito positivos, embora, desde o início, travados por fragilidades várias, desde a insuficiente articulação com os objectivos das universidades (onde os investigadores estão sediados, através de unidades de investigação) à incapacidade de concretizar em tempo útil as medidas enunciadas por parte da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), cujas grandes responsabilidades não têm suporte logístico e funcional.

Ainda assim progrediu-se, embora um dos mais importantes mecanismos previstos, a celebração de contratos pelas universidades com os investigadores doutorados ao abrigo da norma transitória (artigo 23.º) do Decreto-Lei n.º 57 de 2016 tenha sido um processo difícil e a conta-gotas, que apenas integrou uma parte mínima de investigadores doutorados. No caso em que as universidades quiseram utilizar os recursos da norma para aumentarem o corpo docente, pôde acontecer, com bastante perversidade, beneficiar-se professores universitários de carreira com nomeação definitiva, em detrimento de candidatos, naturalmente sem a mesma experiência docente mas com superior capacidade científica.

Outro mecanismo previsto são os Concursos de Estímulo ao Emprego Científico (CEEC) promovidos pela FCT. De carácter anual, estes concursos propõem-se atribuir contratos de trabalho individuais para todas as áreas da ciência. É sobre este programa da FCT para estimular e financiar a investigação científica que nos debruçamos.

Os resultados definitivos da primeira edição do CEEC, referente a 2017, apenas chegaram a 6 de Fevereiro de 2019! Das 4227 candidaturas, foram atribuídos 515 contratos (a bitola tinha sido definida à partida para 500 contratos), o que resultou numa taxa global de aprovação na ordem dos 12,5%.

Os resultados da segunda edição do CEEC (2018) chegaram-nos a 27 de Novembro de 2019 e são ainda mais devastadores. A FCT, sem enunciar qualquer justificação, reduziu o número de contratos a atribuir: apenas 300. Porquê 300? Porque não há dinheiro para mais? Porque essa quantidade corresponde às necessidades dos laboratórios e unidades de investigação? Foram ponderados rácios para jovens investigadores e para investigadores seniores? Concorreram no total 3631 investigadores. O resultado é escandaloso: uma taxa global de aprovação na ordem dos 8,26%.

Isto significa que centenas de cientistas, de todas as áreas científicas, que reuniam condições de aceder ao concurso foram eliminados. Com a atitude indigna de sacudir a água do capote, a presidente da FCT, Helena Pereira, apressou-se a afirmar que “há um limite de mérito abaixo do qual as candidaturas apresentadas não são elegíveis para financiamento”.

No entanto, esta afirmação desresponsabilizadora é facilmente contestável. Segundo o guião de avaliação do concurso, o patamar de elegibilidade para financiamento foi definido a partir dos 8 pontos (até 10). Ora, neste concurso há centenas de investigadores que tiveram uma classificação de 8 ou superior (a lista é pública e pode ser escrutinada). Ou seja, situam-se no patamar considerado de excelência, mas foram liminarmente chumbados. Conhecemos alguns nas áreas especialmente difíceis de afirmação no mercado de trabalho que são as humanidades e artes. Há quem tenha sido eliminado com 8,9, apesar de níveis notáveis de produção científica, reconhecimento pelos pares, especialmente internacionais, e que se candidataram com projectos relevantes.

É o momento de recordar o que disse o ministro da Ciência, Manuel Heitor, que, no início deste ano, garantiu a existência de “pleno emprego” entre os doutorados. Perante uma afirmação tão falsa como demagógica, há que perguntar ao ministro o que devem fazer estes desempregados detentores do grau de doutoramento? Vão inscrever-se nos centros de desemprego (a cujo subsídio de desemprego não têm sequer direito)? Haverá uma linha SOS para lhes dar apoio, talvez ao nível da caridade? Em que condições poderão sobreviver? Serão aconselhados a emigrar?

É preciso ter em conta que estes investigadores não são apenas jovens investigadores em início de carreira, muitos deles são investigadores maduros, em faixas de idade muito variáveis e em diferentes fases da “carreira” de investigação científica. Muitos foram constituindo família e têm filhos, apesar de viverem sempre num regime de precariedade brutal e danoso.

É preciso lembrar ainda que estamos a falar de investigadores que, após anos e anos a serem financiados para fazer ciência (em regime de precariedade), e sucessivamente avaliados positivamente, são os mesmos a quem agora tiram o tapete. Esta situação iníqua provoca, na esfera pessoal, dramas de vida, imenso desalento, descrença em si mesmo. Na esfera pública, o Governo tem de explicar a todos nós como justifica os anos de investimento nestes investigadores, através de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento e do financiamento das unidades de investigação.

Há que corrigir tanto desnorte e tanta desresponsabilização. Em termos políticos de médio prazo, urge ultrapassar a arbitrariedade no número de contratos a atribuir à partida por concurso, assim como os sucessivos atrasos, quer na abertura dos concursos, quer na divulgação dos resultados. É necessário rever formas de actuação. Mesmo aqueles investigadores que, entretanto, foram contratados pelas universidades ao abrigo da norma transitória, foram instigados pelas suas próprias universidades a concorrer ao CEEC da FCT. Estamos diante da sobreposição de formas de actuação que seriam facilmente corrigidas se a tutela se sentasse à mesa com os investigadores e ouvisse as suas sugestões, já que exigir não é possível a quem é permanentemente menorizado.

Em termos imediatos, e perante os resultados do CEEC de 2018, agora divulgados, é indispensável que a FCT alargue o número de contratos previstos, cumprindo pelo menos a taxa de contratos aprovados do último concurso, permitindo a investigadores de excelência prosseguirem os seus trabalhos. Em relação a centenas de outros, excluídos mas classificados no nível 8 e acima, a FCT tem de dialogar com as unidades de investigação para que se reforcem linhas de trabalho flexíveis, motivando necessidades do tecido empresarial e de diversos organismos públicos.

Quem faz ciência em Portugal não tem qualquer dúvida de que muitos dos fracassos e insuficiências deste sector se devem a uma insuportável falta de diálogo. Não há democracia na gestão dos recursos relevantes existentes que a FCT. Há uma ambiência que muitas vezes roça a prepotência, em que os investigadores precários, essenciais no funcionamento do sistema científico nacional, continuam privados de voz e de direitos. É esta situação de navegação à vista, e mesmo assim atulhada de naufrágios, que urge denunciar e corrigir. No momento em que se discute o Orçamento do Estado, deseja-se que os deputados da nação assumam que os mecanismos previstos para regularizar o emprego científico e dar condições dignas de trabalho aos investigadores se traduzem em resultados globais residuais, longe das respostas necessárias. E que proponham e exijam novas linhas de actuação.

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