O cão de Boris Johnson

Se política e comédia coexistem muitas vezes estreitamente, quando entram em choque frontal o resultado pode ser simplesmente catastrófico.

As imagem mais vistas nas televisões e nos jornais para ilustrar a vitória de Boris Johnson nas eleições britânicas foram a da sua entrada e saída da secção de voto levando o cão pela trela – sobretudo quando, finalmente, o ergue e beija ternamente na cabeça. Boris não se enganou ao levar o cão consigo à “poll station”, imaginando porventura que essa poderia ser a imagem mais afectuosa do seu triunfo (bem maior, aliás, do que o próprio Boris sonharia).

Foto
Dylan Martinez/REUTERS

Uma das suas artes consumadas é, de resto, a encenação de situações espalhafatosas e burlescas que o expõem ao ridículo mas também à cumplicidade divertida de admiradores e até de adversários. Boris não receia chocar porque esse impulso é nele irresistível e corresponde à pose de “clown" que insistentemente cultiva. E talvez apenas uma personagem deste género pudesse convencer os britânicos a se libertarem do interminável pesadelo do “Brexit": a saída da tragédia só é possível através da comédia. Por outro lado, para os que já encaravam anteriormente a situação como uma comédia que ameaçava afundar o que restava da reputação imperial do Reino Unido, quem melhor do que um comediante consumado como Boris para impedir que essa comédia degenerasse em tragédia?

Eis, assim, uma hipótese de resumir os motivos que levaram os britânicos – com excepção dos escoceses e dos irlandeses – a contrariar uma convicção que se instalara através de múltiplas sondagens ao longo dos últimos três anos: a de que uma maioria dos súbditos de Sua Majestade seria, afinal, contra o “Brexit" e a favor do “Remain”. Ora, mesmo que essas sondagens reflectissem a realidade, a duração infindável de uma crise política centrada exclusiva e obsessivamente no “Brexit" tornou-se literalmente insuportável. Era preciso sair do pesadelo – e só Boris, com a ajuda providencial de Corbyn, o pior candidato trabalhista imaginável, poderia proporcioná-lo através de um dos seus golpes irresistíveis de comediante.

Política e comédia nunca deixaram de coexistir, por vezes com uma intimidade quase obscena, e Boris Johnson tornou-se, com a sua esmagadora vitória da semana passada, o maior comediante político da sua geração.

Apesar das possíveis semelhanças e familiaridade com outros políticos populistas – como Trump, Bolsonaro ou Órban –, o registo de Boris é outro: pode não ter vergonha de mentir descaradamente ou dizer enormidades ridículas, mas dificilmente o poderemos associar aos discursos do ódio e outras barbaridades mais ou menos extremistas que caracterizam essas personagens. Não por acaso, apesar das cumplicidades que partilham, Boris temeu durante a campanha eleitoral aparecer em público ao lado de Trump (como este desejaria).

Mas eis que chegou o momento da verdade, em que a arte da comédia se arrisca a contar pouco. Ou seja, como irá Boris descalçar a bota do “Brexit”, cuja história, afinal, está ainda muito longe de ter acabado, ou como conseguirá gerir as pulsões nacionalistas de escoceses e irlandeses? Aí começa outro capítulo deste folhetim que culminou, no capítulo anterior, na tal imagem enternecedora do cão de Boris, Dilyn, a ser beijado pelo dono. Se política e comédia coexistem muitas vezes estreitamente, quando entram em choque frontal o resultado pode ser simplesmente catastrófico.

PS – Outro género cómico está a ser cultivado por António Costa e Mário Centeno a propósito do seu diferendo sobre o orçamento europeu. Costa acha normalíssimo andar de candeias às avessas com o seu silencioso ministro das Finanças, como se não se encontrassem ambos, pelo menos, nos conselhos de ministros, e essa insustentável discordância que os opõe não causasse grande estranheza entre os nossos parceiros europeus. Além disso, acontece que nem Costa nem Centeno têm talento de comediantes…

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