A fúria de viver dos italianos

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Os analistas italianos são metodicamente pessimistas. Mas exultam quando percebem uma “pequenina luz bruxuleante”. Ezio Mauro, antigo director do La Repubblica, escrevia há dias sobre a Itália política: “Era um país encostado à parede. Disperso, pelo fim das grandes culturas políticas. Silencioso perante o fragor dos populismos, que obstruíam de raiva e rancor todos os espaços públicos. Um país desaparecido, talvez submerso, incapaz de se pensar a si mesmo e, consequentemente, de exprimir um significado: imaginemos, uma política.”

O jornalista queria saudar a emergência de um novíssimo protesto que interpreta como renascimento da democracia: “As sardinhas.” Ontem, manifestavam-se em Roma, contra a Liga e Matteo Salvini. Le Sardine nasceu no dia 14 de Novembro, em Bolonha, numa mobilização espontânea contra um comício de Salvini. Combatem o “soberanismo” e a extrema-direita. Na forma, tem algumas analogias com o inicial 5 Estrelas, de Beppe Grillo. Com uma diferença: defende a política, denuncia a antipolítica. E, sobretudo, repudia a cultura de rancor do antigo Grillo. “É um movimento de resistência contra as ideias tristes”, disse alguém.

A esquerda italiana vive momentos de ansiedade. Em fins de Janeiro, haverá eleições regionais na Emília-Romanha, histórico “bastião vermelho”. O Partido Democrático continua estagnado. O Movimento 5 Estrelas, seu aliado no Governo, dá sinais de desagregação. Matteo Salvini espreita a oportunidade. As eleições britânicas, em que históricos bastiões trabalhistas passaram para Boris Johnson, provocaram um calafrio na esquerda.

As agruras da Itália política convidam a uma reflexão a partir da Itália social. O relatório anual do instituto Censis — 53.º Rapporto Censis sulla situazione sociale del Paese — apresentado a 6 de Dezembro, dá-nos essa oportunidade.

Como vão os italianos? A “fúria de viver dos italianos” resiste a tudo, responde o estudo. Furore de vivere não é uma expressão corrente nos inquéritos sociológicos, mas é com ela que o Censis abre a síntese da investigação. “A incerteza é o estado de ânimo com que 69% dos italianos olham o futuro, enquanto 17% são pessimistas e 14% optimistas.” Incerteza e ansiedade pelo “desaparecimento do futuro”. Ao mesmo tempo, quase metade dos italianos (48%) declara que gostaria de ver “um homem forte no poder”.

O relatório, 550 páginas de dados e quadros, cultiva a tradição de fazer sínteses acutilantes e bem escritas, indo ao encontro das interrogações dos leitores e não apenas dos cientistas sociais. Podemos ler estes estudos como “relatórios clínicos”.

Ansiedade, incerteza e desaparecimento do futuro. “Como chegámos a este ponto? Os italianos tiveram, primeiro, de metabolizar a rarefacção da rede de protecção do welfare público, em crise de sustentabilidade financeira, (…) e, depois, fazer as contas com a ruptura do ascensor social.” Na França, há a percepção subjectiva de avaria do ascensor. No entanto, os estudos revelam que a mobilidade social continua. Mas, na Itália, a mobilidade social está de facto bloqueada.

Prossegue o Censis: “Contando com as suas próprias forças, os italianos inventaram estratagemas individuais para se defenderem do desaparecimento do futuro, numa defesa solitária de si mesmos, na ausência de grandes estratégias de generais de Exército, que ninguém vê no horizonte destes anos. Trataram de pôr um dique para suster os destroços que os arrastavam para baixo.” Estratagemas individuais que revelam, por exemplo, uma mudança na percepção da economia e da riqueza: fogem dos títulos do tesouro, que já nada rendem, ou do imobiliário, que passaram a encarar como despesa e não como investimento. Preferem os depósitos bancários e a liquidez. “O cash é uma defesa.”

“A ansiedade conseguiu transformar-se em fúria, e a fúria de viver não desapareceu dos rostos, não houve um desabamento.” Mas há um preço a pagar. “O stress existencial, desgastante porque toca a relação de cada um com o seu futuro, manifesta-se como uma espécie de síndrome de stress pós-traumático.” Uma nota: entre 2015 e 2918, o uso de ansiolíticos e sedativos aumentou 23%.

“Desilusão, stress existencial e ansiedade originam um vírus que se aninha nas pregas da sociedade: a desconfiança.” A verdade é que 75% dos italianos dizem ter deixado de confiar nos outros e muitos sentem-se inseguros na rua ou queixam-se de insultos em espaços públicos. Apenas 19% das pessoas falam de política entre si.

“A Itália não é um país pobre, por toda a parte se vê girar dinheiro. Crescemos em vagas velozes e sucessivas: a reconstrução, o boom industrial, depois a expansão das pequenas empresas, a seguir a economia paralela. E saímos da crise de 2008-14 com um comportamento de massa: a frugalidade. E hoje recuperámos as posições pré-crise. É certo que não somos felizes quando somos frugais, o consumismo é o nosso habitat. Mas somos um povo que se sabe adaptar e que se voltará a adaptar na próxima vez. (…) O que hoje falta é o sentido histórico e de invenção económica, o que se traduz na ausência de uma ideia de futuro.”

Os italianos não se desinteressaram pela política nacional. Pelo contrário, é a informação que mais procuram, à frente do desporto ou do crime. “Mas cinzas de um desencanto generalizado: vê-se a política na TV como se fosse ficção.”

O “suicídio em directo da política italiana” tem um alto preço, as pulsões antidemocráticas. “Abre caminho a tensões que estavam no sótão da História, como a expectativa messiânica do ‘homem forte’ que tudo resolve: 48% dos italianos declaram querer um ‘homem forte no poder’, que não tenha de se preocupar com o Parlamento e com eleições.” É uma ideia partilhada por 56% das pessoas com rendimento mais baixo, por 62% dos menos instruídos e por 67% dos operários. Não é uma particularidade italiana.

Giuseppe De Rita, fundador do Censis, repete numa entrevista: “Somos um povo stressado porque não temos uma meta, uma perspectiva. O que falta é o futuro e, por isso, o presente é cansativo e fastidioso.”

Observa a propósito de Beppe Grillo: “Exageraram. O rancor e a ameaça passaram de moda. Ao
5 Estrelas sucedeu uma coisa simples: conheceram os que antes atacavam violentamente, à direita e à esquerda, sem os conhecer.”

De Rita aconselha uma agenda comum “contra a épica do desencanto”.

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