Corrupção dourada

Ainda temos de esperar para ver se a vontade em aprofundar o combate à corrupção tem fôlego para ser consequente.

A semana começou com um anúncio que ocupou as manchetes: o Governo prepara um grande pacote contra a corrupção. O timing foi pensado para coincidir com o Dia Internacional contra a Corrupção, um simbolismo inspirador, mas as intenções, por enquanto, ficam-se pela criação de um grupo de trabalho. É certo que o mandato deste grupo começa com um caderno de encargos bem específico, mas ainda temos de esperar para ver se a vontade em aprofundar o combate à corrupção tem fôlego para ser consequente. Por enquanto, ficam os objetivos divulgados através do PÚBLICO: “colaboração premiada, separação de megaprocessos, juízos especializados em corrupção, acordos de sentenças, magistrados que investigam a acompanhar os julgamentos.”

À primeira vista saltam três ausências gritantes, sendo a primeira delas incontornavelmente o reforço de meios humanos e técnicos. Basta falar com responsáveis do Ministério Público ou da Polícia Judiciária e logo se percebe como é dramático lidar com um quadro de pessoal diminuto e envelhecido. O reforço de profissionais é essencial e tem de ser a prioridade para quem verdadeiramente quer combater a corrupção.

A segunda ausência não é inocente. Os “vistos gold” são uma porta aberta para corrupção, mas este pacote apresentado pelo Governo ignora olimpicamente esta realidade. A Transparência Internacional já recomendou ao Governo português um maior escrutínio público na atribuição de “vistos gold, mas são apelos que caíram em saco roto. Segundo esta organização internacional, o programa de “vistos gold” em Portugal apresenta um sério risco de ser usado por corruptos ou criminosos, potenciando até a corrupção dos próprios Estados.

O esquema dos “vistos gold” é o da venda de passaportes a troco de elevadas quantias, sem perguntar a origem ou a legitimidade do dinheiro. Investigações recentes sobre o caso português permitiram concluir que entre os mais de 10.000 novos residentes se encontram cidadãos chineses procurados pelas autoridades, cidadãos de nacionalidade brasileira envolvidos em mega-investigações de corrupção ou cidadãos angolanos ligados à exploração de recursos naturais.

O resumo feito pela Naomi Hirst, ativista da Global Witness, é muito claro: “Se tivermos muito dinheiro obtido de forma duvidosa, garantir um novo lugar, a que possamos chamar lar, longe do sítio onde o dinheiro foi roubado, não é apenas atraente, é sensato.” É isso que permite o programa dos “vistos gold”. Se o combate contra a corrupção é para levar a sério, não pode haver dúvidas sobre o fim do programa dos “vistos gold”.

A terceira grande omissão choca de frente com uma das grandes vitórias que o Bloco de Esquerda conseguiu recentemente no combate à corrupção: a Entidade para a Transparência. Ora, sobre isso o Governo é completamente omisso, descurando uma área fundamental no combate à corrupção: os políticos.

O presidente do Grupo de Estados contra a Corrupção é taxativo: “Os políticos são eleitos para servir e não para serem servidos. Os políticos devem dar o exemplo, sem ‘ses’ e sem ‘mas’.” Por concordar em absoluto com esta ideia, foram criadas novas obrigações de transparência de património e rendimentos de políticos e altos cargos públicos e alargadas essas obrigações a um universo importante: consultores, peritos, responsáveis de gabinetes ministeriais e altos dirigentes do Estado. Mas é preciso fiscalização e é isso que a Entidade para a Transparência faz, garantindo a defesa contra declarações fraudulentas ou níveis de riqueza desconformes com a informação prestada. Terá meios para isso?

Para concluir, analisando os objetivos do Governo, há coisas que são do mais absoluto bom senso, como a separação dos megaprocessos. Mas o modelo de colaboração premiada, nos termos em que se prenuncia, é um erro que não se esperava. “Tão amigos que nós éramos” é um artigo de Teresa Pizarro Beleza publicado na Revista do Ministério Público (n.º 74) que demonstra a perversidade deste modelo e como rapidamente se pode transformar num negócio entre arguidos e entidades judiciais para redução de penas. Veremos se o que nasce torto se consegue endireitar.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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