O Birras também aparece em sua casa?

As crianças precisam de alguém que as ajude a expressar e a controlar as emoções que saem de forma descontrolada.

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@petercalheiros

Imagine que a Clara está aos gritos no supermercado porque quer, à viva força, que o pai lhe dê uma boneca. Esta situação repete-se quase diariamente, com pedidos, gritos e insistências que parecem não ter fim. Que imagem criámos da Clara? Como a descreveríamos? Se tivéssemos de identificar alguém que represente o problema, quem seria? Facilmente olhamos para a Clara como uma criança difícil e birrenta, que carrega consigo um problema. Como se sentiria a Clara face a esta descrição de si própria? Como é que a Clara se vê a si própria?

Agora, tente observá-la usando uma linguagem diferente daquela a que estamos habituados, pondo o problema (chamemos-lhe o Birras) num espaço em que se torna possível desafiá-lo e, consequentemente, procurar outras soluções. Ou seja, vamos separar o Birras da Clara, porque eles não são a mesma pessoa. Então, tente imaginar a Clara separada do Birras. Como a vê? E ao Birras? Quem é ele? Como é que o Birras faz a Clara comportar-se? Há algo no ambiente que está a reforçar o Birras?

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A Clara e o "Birras" numa ilustração do livro da autora DR

Sem explicações aprofundadas sobre o modelo teórico da Psicologia que está por detrás desta proposta, sugere-se que, ao invés de dizer à criança que ela é malcomportada ou criticá-la de outra forma mais ou menos subtil (“És birrenta, és chata, etc.”), os adultos podem optar por explicar-lhe que algumas vezes pode agir sob a influência de uma personagem desagradável que gosta de ver a família em dificuldade, o Birras. E quando ele está presente e a criança lhe obedece, há confusão, gritos e desentendimentos com os pais ou com outros adultos.

Na verdade, esta abordagem pretende tornar os conflitos normais e próprios do desenvolvimento das crianças (como as birras), mais fáceis de gerir e menos culpabilizadoras tanto para os mais pequenos como para quem tem de lidar diariamente com este desafio. Por sua vez, o facto de a criança acreditar que o problema lhe pertence, ou seja, que é desobediente, impede a sua mudança, porque, por um lado, a sua identidade está contaminada por essa definição (é desobediente e age em consonância), e, por outro, porque é difícil agirmos contra nós próprios.

Depois da separação da criança e do Birras, torna-se possível opor-se-lhe, sem que isto comprometa a relação do adulto com ela, porque preserva a sua identidade ao vê-la separada do problema. A criança é a criança e o Birras representa uma personagem indesejada que se aproveita da correria do dia-a-dia dos pais, da falta de paciência e de algumas crenças sociais para impor a sua presença. Assim, torna-se mais fácil lutar contra o problema e não contra a criança, de quem tanto gostamos.

Perceber que o Birras pode estar a aproveitar-se das circunstâncias da vida dos pais e das características da própria criança para manter-se presente, aponta uma saída para esta situação: enfrentar o Birras e procurar reduzir a sua influência.

Muitas vezes, o que acontece numa situação onde o Birras está presente é uma escalada que acaba mal para ambas as partes. Sendo a maior parte das birras um pedido de autonomia da criança, os pais encontram-se, por vezes, num dilema: não podem deixar a criança fazer tudo o que ela quer, mas não ganham nada em hostilizar as suas tentativas de se afirmar como pessoa autónoma, com vontade própria. Ao perguntar à criança, por exemplo, se o Birras está por perto, ela tem a possibilidade de mudar o seu comportamento, sem admitir abertamente que está a ceder, mas, sim, que está a agir de acordo com a sua própria vontade, não fazendo o que ele manda e quebrando o ciclo de dificuldade. Estimula-se, assim, a vontade de independência da criança, sendo dado espaço a que ela faça a escolha: entrar nesta espécie de jogo e desobedecer ao Birras (ou seja, parar) ou continuar e manter o conflito, sofrendo as consequências. À medida que for compreendido que a família está unida contra o problema e não contra ela, vai também colaborar, facilitando a sua resolução.

Fundamental é que se compreenda que não se trata da desculpabilização do comportamento desajustado, mas antes de uma forma distinta de olhar para o problema, onde a relação da criança com os seus pais e a sua identidade são preservadas. Os pais têm também de adoptar atitudes diferentes, sobretudo, se a birra gera conflito, gritos, impaciência e inconsistência. Oscilar entre momentos em que a criança ouve os pais aos gritos: “Faz já imediatamente!” e, outros, em que dizem: “Faz como quiseres” só desgasta a relação entre os adultos e a criança, e gera mais dificuldade em lidar com ela (porque aprende que há momentos em que os pais vão ceder e continua a insistir). Quanto mais inconsistência, mais insistência.

Algumas ideias são importantes para que esta linguagem funcione: não ameace a criança com o Birras; cumpra o que disser à criança; ajude a criança a livrar-se do Birras (por exemplo, com os mais novos resulta sugerir que o ponha no caixote de lixo); seja consistente; não desautorize o seu companheiro; ajude a criança a encontrar comportamentos alternativos (por exemplo, “não podes jogar a bola, mas podes brincar com os legos”); encontre tempo para brincar com a criança e para ter momentos de afecto. Algumas birras são uma forma que a criança encontra de expressar necessidade de proximidade. É preciso estar atento às necessidades das crianças, porque quando os pais dispensam algum do seu tempo para os seus filhos (sem estar a fazer outras actividades ao mesmo tempo, como ver o telemóvel) tudo pode mudar. As crianças precisam de alguém que as ajude a expressar e a controlar as emoções que saem de forma descontrolada.

E não pensem os pais que irão anular o Birras de um momento para o outro! Adoptar novas atitudes é o primeiro passo para o vencer, mas é preciso aliar-se à persistência, porque o Birras não desiste com facilidade...

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