A prescrição médica é um gesto hipocrático

Despojar o médico desse enorme e único valor pessoal que é a capacidade de prescrição medicamentosa em papel é uma decisão difícil de aceitar pela inflexibilidade e incompreensão de que se reveste.

A prescrição médica, vulgarmente designada por “receita”, parece ser, e é, um gesto simples, de cariz burocrático e despido de preconceitos, vulgaríssimo no nosso quotidiano, e todavia ele briga com múltiplos valores e sentimentos que se refletem na figura do prescritor e na pessoa do doente: competência, idoneidade e integridade por parte de quem prescreve, confiança e esperança por parte de quem a recebe.

No fundo, a prescrição médica é, ou deve ser, a materialização de uma relação tão enaltecida por Hipócrates, o ato médico, concebido como o ponto de encontro de duas individualidades, uma carenciada de ajuda que procura a outra, vocacionada para ajudar.

Este relacionamento entre médico e doente não tem equivalente nas relações humanas, na sua essência e nos atributos que lhe são inerentes, em que sobressaem como objetivos primários a diminuição do sofrimento, a preservação da saúde e do bem-estar e a manutenção da própria vida.

A prescrição de uma receita médica deve também ser entendida como um exercício intelectual, qualquer que seja o tempo que leve a ser concretizada, e não pode deixar de tomar em consideração o diagnóstico da doença e os objetivos que se pretendam atingir com a prescrição, não esquecendo a premência ou a urgência da situação. Esse exercício intelectual deve ser baseado no conhecimento científico por parte do médico, na sua experiência pessoal e numa inestimável dose de bom senso, ou “good judgment”, da literatura anglo-saxónica.

Entendemos que a doença é um dos riscos mais graves e frequentes de que sofre a condição humana e aquele que tem sido, desde sempre, um dos mais temidos: abala-a na sua integridade e ameaça-a nos seus destinos.

Com efeito, nada fragiliza tanto o homem, física e espiritualmente, quanto a doença, transformando-o num profundo carenciado, para o qual a medicina e a capacidade de prescrição médica dela decorrente surgem como a primeira e última das esperanças, disponível 24 horas por dia, no domicílio, no trabalho, na unidade de saúde, na cidade, no campo, na província, ou onde quer que seja.

Escreveu um dia o meu saudoso mestre Prof. Juvenal Esteves: “(...) A medicina e a terapêutica médica constituem o recurso ao suporte frágil do homem físico, que se surpreende na precariedade da existência.”

Com mais de meio século de prática clínica intensa e apaixonante, sinto-me em condições de poder afirmar que por uma receita se vive, tal como por uma receita se morre.

Despojar o médico desse enorme e único valor pessoal que é a capacidade de prescrição medicamentosa em papel, sempre quando e onde for necessário, fazendo-a substituir obrigatoriamente por um modelo informático, rígido e falível, tal como foi recentemente determinado pelo Ministério da Saúde, é uma decisão difícil de aceitar pela inflexibilidade e incompreensão de que se reveste, prejudicial para a comunidade e para a classe médica na sua globalidade e reveladora de menosprezo pelos valores espirituais que devem ser preservados e que emergem da relação hipocrática médico-doente.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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