Como vigiar um homem?

A China exige reconhecimento facial a quem comprar um telemóvel. Mas a China não está sozinha. Está apenas mais à frente.

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Bárbara Reis
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Saí de casa e esta fotografia estava no chão. Como é um retrato tipo-passe, o homem está circunspecto e encara-me de olhos nos olhos. Não posso deixá-lo na calçada, a ser pisado por alguém distraído. Apanho e observo de perto. Não se parece com nenhum vizinho.

Mas será? Somos péssimos a reconhecer caras. Em 2014, Steve Talley estava em casa, em Denver, EUA, quando um homem lhe bateu à porta pedindo desculpa por ter batido no seu carro. Talley foi à rua e, quando se baixou para ver o estrago, três homens de capacete apareceram do nada e espancaram-no com pontapés e a coronha das armas. Eram polícias. O homem gritou “apanharam o homem errado!”, mas foi inútil. Ficou com lesões nervosas, coágulos e o pénis partido. “Eu nem sabia que se podia partir o pénis”, disse mais tarde. Talley foi mantido dois meses numa cela de alta segurança.

Mais tarde, o FBI percebeu que — azar — ele era muito parecido com um ladrão de bancos que, num assalto, agredira um polícia. A história é contada em Olá Futuro: Como Ser Humano na Era dos Algoritmos, de Hannah Fry (Planeta Manuscrito, 2019). O FBI mostrou as imagens do suspeito e um trabalhador da manutenção do edifício onde Talley trabalhava como analista financeiro contactou a polícia e disse que conhecia aquela cara. A polícia pediu ao FBI uma análise de reconhecimento facial que comparasse as duas imagens: forma da cabeça, linha do maxilar, queixo e nariz, lábios, desenho da boca, distâncias entre partes do rosto, sinais na pele e outras características distintivas.

Há cinco anos, o trabalho foi feito “à mão”, por humanos. Hoje já é comum serem as máquinas. Em aeroportos de todo o mundo, incluindo o de Lisboa, fazem-nos um scan facial para entramos na zona de embarque. No Brasil são usados em autocarros para identificar quem não paga bilhete e em escolas municipais para controlar as faltas.

A China, onde a videovigilância reina, acaba de impor um scan facial como condição para comprar-se um telemóvel. Em Espanha, o CaixaBank é o primeiro banco do mundo a permitir levantar dinheiro das caixas através do reconhecimento facial.

As Filipinas querem registar os 100 milhões de cidadãos no novo sistema Iveda. O CEO da empresa, David Ly, disse que “as smart cities precisam de mais do que tecnologia de segurança — precisam de abraçar o movimento da Internet das Coisas”. Na Dinamarca, o estádio de futebol de Brondby, nos arredores de Copenhaga, usa reconhecimento facial para fazer o match automático entre o público e uma lista negra de agitadores. Em Hong Kong, os protestantes começaram há meses uma campanha pela destruição de sistemas de vigilância com tecnologia de reconhecimento facial e o Tribunal da Relação acaba de deliberar que a proibição do uso de máscaras decretada pela administração foi excessiva.

A Índia lançou um concurso para fornecimento de um Sistema Automático de Reconhecimento Facial centralizado. No Irão, há câmaras de vídeo nos autocarros, ruas e monumentos que anunciam “real presence in absence”. Em Itália, um em cada três adultos tem a fotografia numa base de dados e a polícia começa a construir um arquivo de vozes. No Japão, os estrangeiros nos aeroportos são agrupados num sistema separado que usa esta tecnologia.

Foi tecnologia japonesa que o Quénia integrou no seu sistema de vigilância, que tem milhares de câmaras instaladas nas estradas. Em Singapura, o governo instalou uma videocâmara em cada um dos 100 mil candeeiros públicos. A Suécia aprovou o uso de tecnologia de reconhecimento facial pela polícia. O site do Electronic Privacy Information Center é uma janela para o que vem aí.

Os humanos e as máquinas erram. Ainda por cima, os algoritmos, por serem “treinados” por nós, são racistas. Quem não tem nada a esconder não deve ter medo da videovigilância? Esse mito está desfeito. Aqui a questão é proteger a privacidade, não o crime. Na sua Breve História do Futuro (Dom Quixote, 2007), Jacques Attali antecipa para 2050 um mundo de “hipervigilância, autovigilância e auto-reparação”.

O homem que apanhei na rua tem direito a continuar anónimo. Um dia, vou poder saber com um clique quem é ele, onde está e o que fez. Temos esse direito? Hoje, este é um papelinho a preto e branco que saiu de moda. Mas a nossa vida futura vai passar por aqui.

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