Lux-Frágil vai ser casa da música clássica

O emblemático espaço nocturno de Lisboa recebe no primeiro semestre de 2020 sessões de música clássica, numa lógica de recontextualização de obras canónicas, de Schubert a Debussy. “Queremos derrubar barreiras”, diz o maestro Martim Sousa Tavares.

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Claude Debussy, em família, na sua casa de Luzancy, França, em 1893

É bem provável que 2020 venha a ser recordado como o ano da música clássica no espaço do Lux-Frágil, em Lisboa. Não é que ela nunca se tenha feito ouvir ali casuisticamente, mas agora terá direito a um ciclo com curadoria do maestro e director artístico da Orquestra Sem Fronteiras, Martim Sousa Tavares.

Se o objectivo da orquestra é juntar jovens músicos de vários locais da zona raiana e levar música clássica a sítios onde nunca, ou quase nunca, tinha sido ouvida, agora o desafio tem pressupostos similares. Num caso como noutro, trata-se de derrubar barreiras. “A ideia surgiu depois de o [programador e um dos responsáveis do Lux] Pedro Fradique me ter ouvido num programa de TV a falar sobre o ecossistema da música clássica e como tenho tentado, dentro daquilo que é possível, derrubar algumas barreiras de entendimento entre o público e esta forma de arte”, diz-nos o maestro.

Da parte de Martim, 28 anos, há um novo desafio no horizonte. Do lado do Lux-Frágil, icónico espaço lisboeta que completou este ano 21 anos de existência, e que ao longo desse tempo recebeu música de Prince, Nicolas Jaar, Stockhausen ou Carminho, mas essencialmente música de dança electrónica, há o desejo de promover algo novo. Que vai além de transpor músicos da clássica para a pista de dança. O objectivo é mais ambicioso. Trata-se de recontextualizar obras canónicas e inspirar novos significados.

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O compositor John Luther Adams

Novas formas de ouvir

“É um ciclo que ocorrerá uma vez por mês e que se irá chamar Boca do Lobo e onde a música clássica servirá de ponto de partida para pensarmos o mundo de hoje. Queremos que a clássica seja alavanca para pensar temas da actualidade e que vá além da experiência estética. Se outras artes, da literatura ao teatro, conseguem estar próximas das preocupações do quotidiano, porque não a clássica?, interroga Martim. “Cada noite terá objectivos diferentes, propondo-se novas formas de ouvir e de entender esta arte como uma linguagem que deve ser descodificada.”

Para já estão programadas seis noites, com a primeira a ocorrer a 16 de Janeiro. Em evidência, a Viagem de Inverno de Schubert, um ciclo de canções para voz e piano escritas há mais de dois séculos. “No caso dessa peça canónica de Schubert, que é programada muitas vezes e que não tem nada de novo, o desafio é reflectir as questões das migrações. A ideia aqui é usar a música para pensar o próprio poema de outra maneira.”

Nessa jornada o público será levado pela voz de Martin Mkhize, da África do Sul, a residir na Holanda, e ao piano por Mirka Sefa, do Kosovo, a habitar na Suíça. “Entendo que esta obra pode ser cantada na primeira pessoa. É um poema que fala sobre uma viagem, uma narrativa de errância, mas é sempre cantada por pessoas que não trazem verdade àquele texto. Queremos artistas que eles próprios sejam a personificação do poema e, portanto, que o possam interpretar com verdade. Falo de artistas que eles próprios são ou foram imigrantes, tal como o artista cabo-verdiano Fidel Évora, que vive em Portugal, e que vai fazer ilustração em tempo real.”

Não existirão restrições no espaço. Não haverá público sentado. A ideia é ligar tempo e lugar numa prática irrepetível. E Martim dá outro exemplo, totalmente diferente do da primeira sessão, como a do dia 19 de Março, que contará com a música do compositor americano John Luther Adams. “Aí iremos trabalhar o conceito de ecologia sonora a partir de um compositor extraordinário. Toda a música dele quer ser um espaço e não apenas um objecto sonoro, trabalhando a noção de contaminação, ecossistema e evolução. Vamos ter toda a área do Lux invadida por som e nada mais durante três horas.”

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Martin Mkhize, que irá estar no Lux-Frágil a 16 de Janeiro

A 20 de Fevereiro estará em destaque Johanna Bayer, compositora radical, pioneira de composições a solo ou para ensemble, que morreu pobre e sozinha em 1944, tendo o seu trabalho caído no esquecimento. Nas mãos do Drumming GP, será revelada a música misteriosa desta compositora, em contraponto com a música do experimentalista John Cage. A 16 de Abril é a vez de Erik Satie se fazer ouvir, através da pianista Joana Gama, enquanto a 21 de Maio será As One, ópera de Laura Kaminsky com libreto de Mark Campbell e Kimberly Reed, com a participação do ensemble de Chicago Zafa Collective.  

A 18 de Junho, para finalizar o ciclo, será resgatada uma obra multidisciplinar de 1901, com o Lux a ser transformado na ilha grega de Lesbos, estando em destaque a poeta helénica do século VI a.C., Bilitis, e a música do compositor francês Claude Debussy.

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