A Torre da Portugália e o medo das alturas

Fazer campanha contra a construção de edifícios altos vai, mais cedo ou mais tarde, tornar-se incompatível com exigência de construção de habitação a custo acessível no centro Lisboeta.

A Lisboa pós-crise está irreconhecível. É uma cidade com mais oportunidades, mais construção, mais desenvolvimento urbano, mais reabilitação urbana, mais turistas, mas também mais despejos, mais especulação imobiliária, e com rendas mais caras... Muito mais caras. E também começam a aparecer alguns edifícios mais altos. Face a todas estas mudanças, surgem vozes críticas, como seria de esperar. No caso das rendas mais altas, esta contestação é legítima e absolutamente necessária. Mas, por vezes, quando somos confrontados pela complexidade da transformação urbana, caímos na tentação de sermos simplesmente contra toda e qualquer mudança. Mas ser contra a mudança só porque sim tem nome – chama-se a isso ser reacionário.

E um exemplo disto mesmo é a aversão generalizada às construções em altura que temos vindo a constatar. As justificações para esta aversão têm sido variadas – costumam ser paisagísticas, mas também assumem por vezes a forma de uma suposta crítica ao capitalismo, à especulação imobiliária, e por vezes, como no caso da Torre de Picoas ou do da CUF Tejo, acusações de corrupção e/ou incumprimento de regras de planeamento.

Mas por vezes parece ser mesmo só uma aversão puramente ideológica à verticalidade, uma espécie de vertigem invertida em que um edifício alto provoca sentimentos que vão desde o puro cinismo, passando por uma mixórdia de temáticas urbanísticas pouco coerentes, até às atitudes puramente reacionárias contra todo o tipo de transformação urbana. Nada desperta tantos reflexos anti-urbanísticos primários como um edifício alto.

Um dos exponentes destes reflexos tem sido o movimento contra a Torre da Portugália, cujo logotipo se foca na altura “excessiva” do edifício proposto. No seu documento de 18 de Junho de 2019, intitulado “Participação no processo de debate público do Movimento Stop Torre 60m Portugália”, escrevem: “O que nos levou a olhar para o projeto em debate público com mais atenção foi a excessiva altura de um dos edifícios propostos que, com mais de 60 metros e 16 pisos acima do solo, criaria uma importante disrupção no sistema de vistas e no tecido urbano de Arroios.”

Diz o mesmo documento que o projeto tem outros problemas, mas que foi a altura do edifício que despoletou este exercício de fiscalização cidadã da Torre da Portugália. Este tipo de exercício é, obviamente, louvável, somente nos devemos questionar se é racional fazer da Torre da Portugália o símbolo máximo de tudo o que está a acontecer de errado em Lisboa. A questão aqui é – de todas as mudanças recentes que temos visto em Lisboa, será o aparecimento de alguns edifícios mais altos a que merece a nossa atenção? E temos assim tanta a certeza de que é uma coisa má?

As críticas ao modelo de financiamento e uso do edifício que têm sido feitas ficam então em segundo plano, em benefício de relutâncias meramente paisagísticas. E se escolhermos uma crítica paisagística, o problema da Torre da Portugália não é ser alta, mas é ser particularmente feia (a imagem do projeto mostra uma torre de vidro altamente genérica). E para quem se queixa da falta de habitação acessível no centro de Lisboa, a altura da Torre deveria abonar a favor, e não contra o projeto.

E o que conseguiu até agora o movimento contra a Torre da Portugália? Conseguiu que o projeto para o edifício ficasse com menos onze metros de altura. Com que custo? Menos área construída, tetos mais baixos e menos habitação. Pode tratar-se de uma vitória para o movimento contra a Torre da Portugália, mas fazer campanha contra a construção de edifícios altos vai, mais cedo ou mais tarde, tornar-se incompatível com exigência de construção de habitação a custo acessível no centro Lisboeta.

Uma das questões principais que devemos pôr ao movimento contra a Torre da Portugália, o qual integra muitos moradores e proprietários da zona de Arroios, é – um grupo de moradores de uma certa área, e sobretudo os proprietários, devem ter o direito de negar o aumento da probabilidade que outros têm para se tornarem também moradores e proprietários no futuro? E não é isso afinal o que acontece quando um grupo de moradores se junta para impedir que se construa mais e mais alto no seu bairro.

Podemos também adoptar uma outra abordagem. Queixamo-nos constantemente do turismo “excessivo” nos centros urbanos Europeus. Mas falamos pouco sobre as atitudes reacionárias para com o urbanismo que adotamos, as quais abriram o caminho para que isto acontecesse.

Por causa destas atitudes, os centros urbanos Europeus transformaram-se em museus. Claro que sim. Tudo o que “protegemos” da mudança com um simples instinto de conservação em mente torna-se naturalmente num museu. E depois ficamos surpreendidos quando vêm hordas de turistas tirar fotos e as nossas casas são transformadas em hotéis. Mas não é, afinal, o que seria de esperar que aconteça num museu?

Num contexto em que muitos centros Europeus se estão a tornar museus de céu aberto, meros recreios para turistas enquanto os seus habitantes são sucessivamente expulsos para as periferias, exigir mais habitação acessível no centro deve ser, e vai inevitavelmente tornar-se, numa das exigências políticas centrais do futuro próximo. E em cidades como Lisboa, afetadas pela gentrificação agressiva e a turistificação massiva do seu centro, num contexto em que uma grande parte dos seus habitantes já tem sido, nas últimas décadas, empurrados sucessivamente para as periferias, e em que virtualmente só se construiu habitação em altura longe do centro, a verticalização do centro em si não nos deve provocar vertigens. Pelo contrário.

A habitação social massiva construída nas periferias urbanas representou um avanço histórico, mas deixou-nos com um legado de exclusão socio-económica, e com habitação a mais na periferia e a menos no centro. Também gerou fossas geográficas e subsequentemente socio-económicas nas nossas cidades e nas nossas sociedades. O desafio para a habitação social do futuro será a de conseguir “invadir” o centro. Se contestarmos a Torre da Portugália por causa da sua altura, que direito teremos depois de exigir que se construa em quantidade suficiente nos centros urbanos?

Podemos ir mais longe ainda. Em vez de contestar a “altura excessiva” da Torre da Portugália, que tal exigirmos construção de mais torres? Não só em Arroios, mas um pouco por toda Lisboa. Desde que sejam para habitação, e a custos acessíveis aos que mais necessitam.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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