Experiência com bebés “editados” na China pode ter erros graves

Excertos de um artigo assinado pelo cientista chinês que alega ter editado gémeas que nasceram no final de 2018 foram revelados esta semana e parecem indicar que houve várias falhas na experiência.

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O cientista chinês He Jiankui em Novembro de 2018 ALEX HOFFORD/EPA/LUSA

Já passou mais de um ano desde o anúncio do cientista He Jiankui que chocou o mundo quando afirmou ter editado geneticamente dois bebés nascidos na China, mas o caso ainda continua a dar que falar. A revelação de excertos de um artigo que nunca chegou a ser publicado, mas que é assinado pelo cientista chinês forneceu agora alguns pormenores importantes sobre a polémica experiência apoiada na técnica de edição genética conhecida como CRISPR. Alguns especialistas que já analisaram o documento defendem que há erros graves que podem ter provocado mutações inesperadas e indesejadas nas duas crianças.

António Regalado, editor na área de biomedicina da revista MIT Technology Review, foi o primeiro a publicar um artigo – com o título “Cientistas chineses estão a criar bebés CRISPR” – sobre este assunto, em Novembro de 2018. Agora, o mesmo jornalista divulgou alguns excertos de um artigo sobre a experiência com as gémeas Lulu e Nana que o cientista He Jiankui terá submetido para publicação. Aparentemente, existem dois artigos sobre esta experiência, mas nenhum terá sido aceite para publicação em nenhuma revista científica. António Regalado teve acesso a estes documentos que revelam detalhes importantes sobre o procedimento e decidiu agora tornar estes dados públicos.

Fora do alvo

He Jiankui terá editado um gene nos bebés que, quando está naturalmente mutado, confere a vantagem de uma resistência à infecção por VIH. Os receios de outro tipo de consequências desta edição genética considerada “irresponsável” surgiram logo na altura do anúncio, em Novembro de 2018. Os excertos agora divulgados parecem confirmar o pior.

O artigo levanta, então, várias questões preocupantes. Primeiro que tudo, suscita sérias dúvidas sobre o procedimento. Fyodor Urnov, cientista da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA) que se especializou em edição genética, disse à MIT Technology Review que os dados apresentados não confirmam que He Jiankui conseguiu impor a “desejada” mutação no gene, conhecida com CCR5 delta 32. “A alegação de que eles reproduziram a variante CCR5 é uma deturpação flagrante dos dados e só pode ser descrita de uma forma: uma deliberada falsidade”, afirma o especialista. Aliás, o artigo revelará que o mais provável é que o cientista chinês tenha acertado no gene alvo, mas tenha provocado uma série de outras mutações indesejadas. “A afirmação de que a edição de embriões ajudará milhões é igualmente ilusória e ultrajante”, considera ainda o geneticista Fyodor Urnov.

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Gémeas foram geneticamente editadas Nuno Ferreira Santos

O risco dos chamados efeitos off-target (fora do alvo) da edição genética tem sido motivo de inúmeros alertas da comunidade científica e foi uma das principais preocupações manifestadas pelos cientistas na altura do polémico anúncio.

Para garantir a eficácia da edição genética seria necessário inspeccionar cada uma das células do embrião de forma a certificar que todas tinham a mutação desejada e apenas essa. Algo que, obviamente, não foi feito neste caso.

Incongruências

O artigo coloca outros problemas. Por um lado, os médicos que acompanhavam os pais destas gémeas (o pai seria seropositivo e teriam sempre de recorrer a técnicas de procriação medicamente assistida para evitar uma transmissão ao bebé) não aparecem na lista de autores do trabalho. A lista inclui dez dos autores, a maioria são investigadores do laboratório de He Jiankui na Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul, mas também está lá Hua Bai, director de uma rede de apoio a VIH, que ajudou a recrutar casais, e Michael Deem, um biofísico norte-americano cujo papel neste processo ainda está a ser analisado pela Universidade Rice (Texas, EUA). Para um projecto com esta ambição, uma equipa de dez pessoas é manifestamente pequena.

Por outro lado, He Jiankui refere no documento que as gémeas nasceram em Novembro de 2018, quando existem relatórios que referem que o nascimento aconteceu em Outubro. Porque mentiu, se mentiu, o cientista? Talvez para tornar mais difícil a identificação desta família que o cientista chinês fez questão de manter no anonimato, arriscam os investigadores que comentam o caso.

O artigo assinado por He Jiankui tem o título “Nascimento de gémeos após edição do genoma para resistência ao VIH” e conta com 4699 palavras. O cientista chinês terá ainda tentado publicar um segundo trabalho onde aborda experiências realizadas em laboratório com embriões humanos e animais. Os dois rascunhos terão sido editados por He Jiankui no final de Novembro de 2018 e serão as primeiras versões submetidas para publicação, admitindo-se ainda a hipótese de um outro documento que combina os dados destes dois. Nenhum deles, sublinha-se, foi publicado até agora.

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He Jiankui quando fez o anúncio que chocou o mundo EPA/ALEX HOFFORD

Na notícia de António Regalado, refere-se que o texto de He Jiankui fala num “avanço médico que pode controlar a epidemia de VIH”, usando várias vezes a palavra “sucesso” desta “nova terapia”. No final do resumo e no início do texto principal, os autores justificam esta investigação defendendo que aquela edição genética pode salvar milhões de pessoas da infecção pelo VIH. Uma alegação que é considerada “absurda” e “ridícula” pelos cientistas que comentam este artigo. No final do artigo, He Jiankui faz uma série de agradecimentos, mas aparentemente muitas das pessoas ali indicadas nem sequer chegaram a responder aos seus emails. Depois, as informações sobre as aprovações éticas da experiência são muito vagas e também não há qualquer indicação sobre o financiamento do projecto.

Onde pára o cientista chinês?

Finalmente, nos dados anexados ao artigo, no chamado material “suplementar”, há tabelas que o cientista mostrou na altura do anúncio, em Novembro de 2018. Mas, segundo os cientistas que analisaram o documento, estes dados mostram claramente que os embriões são “mosaicos”, o que significa que diferentes células do embrião foram editadas de maneira diferente.

Pouco a pouco, e sem que se saiba mais sobre o paradeiro do cientista ou dos bebés, ainda se tenta perceber quais as possíveis implicações desta perigosa manipulação que, ao contrário do que esperava He Jiankui, foi vaiada e condenada pela comunidade científica. No entanto, apesar das muitas condenações, os progressos na imposição de regras e regulamentação específica para este tipo de experiências foram até agora praticamente nulos.

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