Médicos e merceeiros

Cheguei a um ponto da minha vida em que digo a minha profissão quase como quem pede desculpa. Porque somos todos maus, olhados com desconfiança – um olho no burro, o outro no médico. Que é como quem diz, os dois olhos em nós.

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Marcelo Leal/Unsplash

Há umas semanas, cheguei à mercearia onde costumo comprar a fruta e os legumes mesmo a tempo de ouvir o dono, Sr. Silva (nome que não é o dele), dizer a uma cliente: “Olhe, minha senhora, médicos não conheço nenhum bom, mas então médicas…” O Sr. Silva é simpático, educado, trabalhador, escolhe a fruta mais madura e doce para o meu filho, mas não gosta de médicos e muito menos de médicas. O Sr. Silva gosta de mim porque não sabe que sou médica.

Ninguém gosta de médicos. São arrogantes, sobranceiros, não querem ajudar os doentes, só querem fugir o mais depressa que puderem para o privado e forrar os bolsos. Trabalham pouco e ganham muito. Ainda mais a expensas do povo, que lhes paga o curso e os salários. Os doentes esperam meses, por vezes anos, por uma consulta, as cirurgias são adiadas, as horas desesperadas sucedem-se num serviço de urgência, as macas acumulam-se nos corredores, num Tetris mórbido que se é forçado a jogar. A culpa é dos médicos, que alimentam o espírito (e os bolsos, não esquecer) com o sofrimento alheio. O Governo, na pessoa da Senhora Ministra, tenta de tudo para resolver o drama, mas eles não deixam. Os hospitais estão vazios de equipamentos, de pessoal, de motivação, mas a culpa é dos médicos.

Se calhar sou eu que só conheço médicos bons, mas os que conheço trabalham muito e ganham pouco. Perdão, já me cruzei com maus médicos. Também me cruzei com maus professores, advogados, trolhas, empregadas de limpeza, motoristas, comerciantes. Maus cozinheiros – isso é que não perdoo! Porque em todo o lado há pessoas boas, pessoas más e pessoas mais ou menos.

Cheguei a um ponto da minha vida em que digo a minha profissão quase como quem pede desculpa. Porque somos todos maus, olhados com desconfiança – um olho no burro, o outro no médico. Que é como quem diz, os dois olhos em nós.

A luta é desigual, o bombardeamento com desinformação é cerrado, a adivinhar a tempestade. Mas mesmo debaixo do granizo que cai como pedras, continuamos a trabalhar e a tentar ajudar aqueles que precisam de nós. Às vezes, há doentes que sorriem, dão um aperto de mão forte e balbuciam um agradecimento. No outro dia, até me deram um abraço e um beijinho. Nesses momentos, esqueço as pessoas que não gostam de médicos. Nesses momentos, até acredito que há pessoas que gostam dos seus médicos, mas apenas balbuciam um obrigado tímido. E essa timidez não é audível contra o ódio verde, visceral, que nos vomitam em cima.

Também já me insultaram e me bateram com a porta do gabinete na cara. É difícil agradar a todos. Nem eu me agrado a mim própria todos os dias. Neste momento, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é que parece não agradar a ninguém. Valha-nos Santa Marta, irmã do falecido Lázaro, cujas lágrimas apiedaram Jesus Cristo e o fizeram ressuscitá-lo. Só mesmo um milagre para reerguer um SNS morto.

Confesso que, naquele dia, a fruta do Sr. Silva não me soube tão bem como de costume. Um destes dias, entro lá e digo “Olhe, Sr. Silva, merceeiros não conheço nenhum bom.” É que eu mudei de mercearia porque a dona da anterior metia no saco fruta podre.

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