A guerra dos mundos na política portuguesa

Entre o mundo emergente dos pequenos partidos e das suas “originalidades” e o mundo pantanoso das velhas políticas tão difíceis de reformar, o país corre o risco de ficar refém de um bloqueio histórico.

O caso Joacine e as peripécias envolvendo os novos partidos “unipessoais” com assento no Parlamento estão a eclipsar o ambiente político tradicional, a actividade das oposições divididas (PSD) ou apagadas (CDS) e a própria acção governativa. O efeito da novidade ou do insólito tende a impor-se mediaticamente aos velhos folhetins mais ou menos gastos e previsíveis, o que não é propriamente uma surpresa. A curiosidade e a excitação suscitadas pelos sucessivos episódios anedóticos envolvendo Joacine e o Livre não têm precedentes – pelo menos de fresca data – na política portuguesa. Mas o caso do Chega e de André Ventura, convertido recentemente no tribuno do “movimento zero” e das reivindicações das forças de segurança, tornou-se também pretexto de agitação, onde alguns pretendem ver projectada a nostalgia da extrema-direita (ou da “direita nacionalista” como prefere chamá-la um dos seus saudosistas, Jaime Nogueira Pinto).

O Livre e Joacine ilustram a bizarria dos caminhos por onde se foi perdendo uma esquerda radical em busca de originalidade ideológica. Já Ventura e o Chega limitam-se a tirar do baú as bafientas saudades salazaristas, embora o comentador televisivo benfiquista tenha encerrado o seu currículo académico defendendo teses políticas opostas às que hoje proclama. Finalmente, há ainda a Iniciativa Liberal (IL), mas esta limita-se sobretudo a um espectáculo de cartazes de rua onde expõe um incipiente liberalismo novo-rico à espera de conquistar terreno entre as direitas envelhecidas.

Resumindo: tudo isto poderia não passar basicamente de folclore ou de uma transitória capitalização dos descontentamentos que, entre outros sectores, as forças de segurança polarizam. Só que – e isso é deveras preocupante – o vazio que estes episódios preenchem não se deve apenas a um mero efeito de novidade. Deve-se também ao cansaço e esgotamento dos discursos políticos tradicionais – à esquerda ou à direita –, com destaque particular para as contradições cada vez mais insustentáveis das políticas do Governo, entre o rigorismo financeiro de Centeno e as situações de carência dramática de sectores como a Saúde, a Educação ou as forças de segurança (para só falar em exemplos mais ostensivos). Aliás, o mal-estar no interior do executivo foi expresso esta semana pelo confronto ínvio entre o ministro da Administração Interna e o ministro das Finanças relativamente à precariedade em que se encontram a PSP e a GNR.

Esse mal-estar já não pode ser disfarçado pelo próprio António Costa, apesar das suas recentes promessas de revitalização do mais debilitado dos sectores em crise: a saúde. Por outro lado, as relações entre Costa e Centeno já conheceram melhores dias e é óbvio que as agendas de ambos tendem a divergir desde a formação do actual Governo (onde o lugar régio de Centeno foi ocupado pelo novo ministro da Economia e amigo de Costa, Siza Vieira). Para Centeno, as “contas certas” não são compatíveis com as fantasias líricas de uma visão financeira da Europa que o primeiro-ministro vem cultivando. Ora, até que ponto poderá manter-se este equilíbrio cada vez mais instável entre Costa e Centeno, evitando uma situação de ruptura? Como será possível compatibilizar a recuperação do país – e dos seus sectores mais atingidos pela precariedade – com o rigor austero das contas que é ainda um dogma religioso na União Europeia?

Entre o mundo emergente dos pequenos partidos e das suas “originalidades” e o mundo pantanoso das velhas políticas tão difíceis de reformar, o país corre o risco de ficar refém de um bloqueio histórico, por mais cor-de-rosa que sejam os sonhos portugueses de António Costa – e europeus de Ursula von der Leyen.  

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