África Oriental no confronto de estratégias

O primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed Ali, possui dois elementos biográficos que o colocam em posição invejável para conduzir a esperada reforma geral do seu país: é filho de pai muçulmano e mãe cristã e nasceu na conturbada região de Oromia.  Após uma carreira dentro do regime autoritário conseguiu substituir o seu antecessor com base em propostas democratizantes. Libertou os presos políticos e assinou a paz com a vizinha Eritreia, pondo termo à situação de guerra prevalecente há quase duas décadas. A conquista do Prémio Nobel da Paz reforçou a sua imagem, mas o grande teste talvez sejam as eleições marcadas para o próximo ano.

Até aqui, a Frente Democrática Revolucionária dos Povos da Etiópia, no poder, ocupa a totalidade das cadeiras no Parlamento. Porém, Abiy Ahmed criou uma nova formação política – o Partido da Prosperidade – em substituição da velha estrutura e como símbolo renovador. Líderes oposicionistas, parte dos quais passaram vários anos na prisão, insistem em abertura mais rápida, por exemplo, no domínio da liberdade de expressão. E preparam-se para o confronto eleitoral na esperança que, desta vez, o escrutínio seja livre e correto.

Na passada semana um referendo teve lugar na região de Sidama, cujo resultado produziu o décimo estado regional da federação etíope, definida como Estado plurinacional, ou seja, as comunidades e etnias têm estatuto de nacionalidades.

Ao mesmo tempo prossegue a construção da grande Barragem do Renascimento Etíope, no curso do Nilo, iniciativa considerada vital para os novos objetivos de desenvolvimento, mas fortemente contestada pelo Sudão e o Egito, com receio de verem o caudal do grande rio ser afetado nos seus territórios, fator de tensão com potencial de agravamento. Donald Trump propôs-se como mediador neste conflito.

Estrategicamente situada nesta sub-região, a Etiópia tem uma história milenar. Por exemplo, adotou o cristianismo décadas antes da Europa Ocidental, manteve-se independente apesar de constantes ataques, participou nas duas guerras mundiais e foi um dos últimos focos de conflito da guerra fria. É sede da União Africana e de várias agências da ONU para África.

A separação da Eritreia, na década de 1990, privou a Etiópia de litoral, dependendo agora de Djibuti e do crucial caminho de ferro que liga os dois países para as suas relações comerciais externas. As afinidades não terminam aí. A Etiópia possui as maiores forças armadas da sub-região com várias intervenções na guerra da Somália, enquanto o Djibuti detém uma gigantesca base aeronaval, utilizada pela França e Estados Unidos na vigilância do acesso sul ao mar Vermelho e em operações especiais na Somália, onde a Al- Shabab  – da rede Al-Qaeda – permanece ativa através de grandes atentados e ameaçando todos os vizinhos.

Mais recentemente e em menor escala, o Japão e a China também se instalaram no Djibuti para proteger a sua navegação na rota de Suez.

As margens do mar Vermelho, mais a norte, conheceram este ano uma alteração de vulto com a queda do regime de Omar El-Bashir, no Sudão, após grandes manifestações populares, iniciadas em Dezembro do ano passado e um golpe de Estado em Abril deste ano. Um acordo entre os militares e a Aliança pela Liberdade e a Mudança (criada pelos grupos de manifestantes) deu lugar a um conselho de governo transitório que deverá conduzir o país durante três anos e, então, convocar eleições.

Assim, dois países importantes da área abrem caminho à democratização, enquanto outros dois persistem na via inversa. A Eritreia é mesmo um dos Estados mais totalitários do mundo e o Sudão do Sul continua sob um acordo de paz bastante frágil.

Todo este conjunto, acrescido da Somália, faz hoje parte do contexto bélico que atravessa o mar Vermelho em virtude da guerra civil no Iémen, reforçando o valor do litoral sudanês e da base de Djibuti.

Neste quadro, aliás, o Quénia aparece como uma retaguarda importante, já tendo desempenhado papel central na redução da pirataria e enviado unidades militares à Somália, posteriormente integradas na Amissom (Missão da União Africana). O interesse queniano é evidente, por ser alvo de grandes atentados do Al-Shabab.

Em termos internos, este é outro país onde a luta pela democracia constitui o eixo central de todo o relacionamento político. O trauma das eleições de 2007, quando mais de mil pessoas perderam a vida em confrontos, não passou e, as eleições de 2017 tiveram de ser repetidas por decisão judicial em virtude de fraudes. Na repetição, foi considerado eleito o atual Presidente, Uhuru Kenyatta, mas o seu adversário, Raila Odinga, rejeitou o resultado e considerou-se vencedor.

A eleição de Kenyatta obteve aprovação internacional e, os níveis de liberdade de expressão aumentaram. Tal como na Etiópia, aguardam-se as próximas eleições, neste caso em 2021, como teste sobre o estado real do processo e, até lá, o Quénia luta com enormes dificuldades económicas, embora a introdução de métodos de cálculo mais atualizados tenham conduzido à elevação do produto interno bruto.

No Uganda vive-se a mesma expetativa eleitoral também no horizonte de 2021. Um popular cantor de rap, Bobi Wine, conseguiu eleger-se deputado oposicionista em 2017, apesar dos limites impostos pelo governo de Yoweri Museveni e revela uma forte capacidade de mobilização e manifestação. O seu prestígio cresce a cada ato repressivo das autoridades e promete candidatar-se à Presidência.

A balança geral de forças inclinou-se este ano, na África Oriental, em favor da democracia, mas a existência de posturas autoritárias (ou totalitárias) e belicistas constitui um alto risco, acentuado pelas proximidades da península arábica e a rota de Ormuz.

Investigador visitante do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE/IUL

Terceira de uma série de cinco análises às regiões de África – todos os domingos

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