Para lá de precários

Uma precariedade para a qual até já se desenvolveu um conceito: o da “uberização” do trabalho, mas ainda não se desenvolveu uma resposta.

Estão por todo o lado, com aquela espécie de enormes mochilas cúbicas e coloridas às costas, equilibrando-se em motorizadas ou bicicletas eléctricas. Fazem fila nos restaurantes onde almoçamos ou jantamos. Tocam-nos à campainha, nos dias em que as horas não nos chegam ou o comodismo nos sobra. São-nos úteis, pensamos. Sim, são-nos úteis…

Ou então encontramo-los por todos os nossos caminhos, nos engarrafamentos sem-fim das horas de ponta, conduzindo carros novos, lustrosos, com o dístico TVDE. E chegam em três ou quatro minutos, estejamos nós onde estivermos, faça chuva ou faça sol, para nos transportar quando não nos apetece ou não podemos conduzir, para levar os nossos filhos à escola ou para os trazer, já de madrugada, das discotecas. Ou para levar os nossos pais até ao consultório médico. Para fazer, enfim, o que o nosso tempo, ou a nossa vida não nos permitem. E são-nos úteis, pensamos. Sim, são-nos úteis…

Do que não nos lembramos é que estas existências úteis, naquela espécie de mochilas enormes que levam às costas, ou nos veículos novos, lustrosos e climatizados, transportam também, juntamente com o nosso jantar, ou ao lado do nosso filho adolescente, uma precariedade de vida que está muito para além da precariedade “tradicional”, ou seja, daquela que tem sido objecto da retórica e das reivindicações sindicais.

Uma precariedade para a qual até já se desenvolveu um conceito: o da uberização” do trabalho, mas ainda não se desenvolveu uma resposta.

Porque estas são situações sociais que necessitam de uma resposta, e necessitam-na porque esta é uma precariedade de trabalho  que se traduz na ausência de vínculo sim, como é próprio da precariedade, mas que se traduz, sobretudo, numa total ausência de protecção perante todas as circunstâncias da vida que, muitas delas, estão ligadas directamente ao próprio exercício do trabalho, como seja o caso de um acidente que força à paragem, sendo que quem pára não ganha; ou a ausência de protecção que exige que se trabalhe, pelo menos, dez horas por dia, e em que se trabalha bem mais do que esse número, porque as plataformas destas novas economias florescem e se multiplicam, numa concorrência agressiva que, sendo útil para os clientes (sendo útil para nós), faz com que o trabalhador ganhe cada vez menos.

Porque é de trabalhadores que se trata, dado que são pessoas que vendem a sua força de trabalho e que vendem o seu tempo, a troco de uma remuneração, ainda que incerta e, tendencialmente, cada vez mais baixa. Trabalhadores relativamente a quem as plataformas digitais rejeitam qualquer tipo de responsabilidade ou obrigação.

E sublinho trabalhadores, para que não os incluam nessa fabulosa e moderna categoria que é a dos “empreendedores”, conceito interessante que, na maior parte dos casos, é utilizado para designar alguém que já desistiu de encontrar emprego e que tenta arranjar uma maneira de se “safar na vida”, ao mesmo tempo que dá um prestimoso contributo para a diminuição dos números oficiais do desemprego.

Mas são empreendedores sim, só que não como categoria, mas como atributo. Um atributo que advém da necessidade – e todos sabemos como a necessidade aguça o engenho.

E advém da necessidade porque a precariedade destes trabalhadores é “apenas” mais uma faceta de vidas que são (ou se tornaram), no seu todo, precárias.

Porque a maioria destes homens e destas mulheres são as pessoas para quem o salário – demasiado baixo – não chega para viver (e, por isso, procuram um complemento naquelas horas que deveriam ser de descanso); ou são imigrantes com difícil acesso ao mercado de emprego estável; ou, como parece suceder cada vez mais, fazem parte daquela massa de desempregados de longa duração, que já esgotaram os prazos do subsídio de desemprego, que são demasiado velhos para o mercado de emprego e que ainda são demasiado novos para a reforma.

E são estas as pessoas que compõem essa nova categoria de trabalhadores precários, totalmente encurralados entre a consciência da sua total desprotecção e a premente necessidade de ter um rendimento para subsistir.

Naquilo que é um absoluto retrocesso, em matéria dos direitos mais básicos de protecção laboral, estes trabalhadores socialmente invisíveis, na visibilidade colorida das enormes mochilas que transportam às costas, ou no lustro impecável dos carros que conduzem, são também, e paradoxalmente, a marca do desenvolvimento económico e tecnológico; são, enfim, mais uma marca do estranho progresso da contemporaneidade.

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