Criação - apropriação - circulação - fruição

A arte pode ser essa vida outra contra a vida que o capitalismo estruturou como o seu real.

Devia ser claro mas não é. É a primeira questão. O que se cria é uma singularidade, um corpo imprevisto — nem tudo é criação, nos gestos diários e nos planificados, improvisemos ou não pequenos fazeres no meio de rotinas, realizemos actos espontâneos e aconteça que acasos nos coloquem diante do inesperado. Isso pode ser um começo de, mas não é criação. Há em tudo dimensões criativas, mas a obra supõe uma não existência anterior (mesmo que sob influência ou alinhamento estilístico de objectos e escolas anteriores) e ao mesmo tempo possuir uma capacidade de contaminar quem vê/lê/ouve/ frui de uma vivência que lhe restitui a percepção subjectiva de outra humanidade possível, de uma sociedade em que a circulação do belo fosse um lugar de liberdade em expansão e nessa medida uma espécie de outro pulsar do real — isso seria o presente da fruição, instante, momento ou duração, memória, domínio do tempo.

O objecto estético — possui uma vida própria inesperada transmissível pela sua intensidade e singularidade semântica/formal e converte-se em outro modo de energia no fruidor — vive no instante pressentido do belo, a sua micro-realidade. E o belo é crítico e possui potencialidade cognitiva, mesmo que essas dimensões não sejam nem explícitas nem programa (os modos do belo são infinitos, os trabalhos da forma incessantes) já que mesmo a obra que busca a proporção harmónica segundo o cânone antigo instala uma dimensão utópica logo crítica do real por desacordo com este — para mais, quando as estátuas antigas, por exemplo, por obra do tempo, introduzem “algo perdido” (literalmente um braço), uma espécie de nostalgia que se converte em pertença futura, forma de o desejo reencontrar “a aura do algo perdido” no que no impacto da redescoberta se converte em devir, energia contaminada pela possibilidade da “(im)perfeição” (o cânone perdeu os três definitivamente e é sem medida prévia) num mundo deformado pela imperfeição como possibilidade da forma.

Qualquer objecto — pintura, instalação, um corpo a corpo teatral — é imediatamente apropriado por todas as formas de mediação que sobre ele estão montadas —, a mediação é o big brother que conforma a obra e o sujeito que nela vive numa outra coisa que lhe permite transitar, uma espécie de BI da obra, de carta de circulação da obra, de classificação e estatuto da obra. Esse trânsito do que sendo criado é criação é um modo da sua afirmação que a nega porque lhe altera valores próprios e reduz a objecto com direito de circulação nesse subsistema designado criativo no interior do grande sistema de troca. Uma obra pode estar uma eternidade no escuro, é no momento em que luz na luz que a escolhe e visibiliza, virtualiza, que ela passa a existir, é o seu único modo de parto. O outro será subterrâneo, e como diz o Senhor Onde, personagem de Vinaver, tem o seu papel no circuito das galerias, isto é, no labirinto das toupeiras. Os cegos vêm melhor por aqui.

Mas, sabendo isso, o que a preexiste como forma de apropriação — os regimes de leitura e classificação, de instituição e os modos de circulação implicam que a inserção crítica do parto no esquema pode, pelo efeito de estranhamento, pela crítica do fluxo, pela escolha do espaço e dos media alternativos, pela criação de outra realidade inventar-se — embrionária — como modo de escapar à regra que conforma tudo ao modo de apropriação (semântico, publicitário, de trânsito comercial) e que resulte em outro modo de apropriação, com a consciência de que fazê-lo numa margem é, longe da celebração e da renda autoral, potenciar outras possibilidades de expansão social, combater a residualidade, lutar por outra sociedade.

Há ilhas de desejo rebeldes aos circuitos pré-estabelecidos da líbido, a formatação dominante não converte tudo e todos em formatados, há rebeldias produtivas e modos “disfuncionais” de agir que libertam outras possibilidades que pressentidas têm territórios de expansão — tudo isto tem a ver com o exacto contrário das indústrias criativas, modo de ocupação dos territórios da imaginação pelas formas do capitalismo cultural impregnadas dessa linguagem chamada design, que converte objectos “artísticos” em eficácia publicitária, associados à venda.

Deixem os índios viver as suas vidas, o “progresso” é o caminho exacto da destruição. Isso tem a ver com o belo, o tempo e o espaço não determinados pelo fluxo concorrencial mas pelo desejo de beleza. Com a destruição do que na criação — na natureza — se converteu em morte a prazo o que vivemos é a “criação” do fim e não o fim da história. No horizonte não há sociedades de abundâncias mas o fim das espécies, da espécie humana. Quando se nomeiam os peixes que no oceano ainda resistem de stocks está tudo dito.

Pelo lado da avaliação do que circula no subsistema do supostamente belo associado à troca — estrelas de um a cinco — temos presente o regime mais policial que se possa imaginar, dado que a avaliação/classificação determina mesmo o que lhe escapa — a classificação torna normativo o que não o é, domando o que não obra é a sua pulsão criativa própria, convertendo o embrulho classificatório na própria coisa.

Mas vivendo imersa em modos de linguagem, é modo de ler, necessita sempre de que na leitura seja descontaminada, necessita do tempo da quarentena para ressurgir — Brecht falava do aparelho burguês da produção que a conformava a formas de êxito pré-determinantes, o que se alterou não vai no sentido de uma socialização dos objectos por dentro de um serviço global e público da criação/formação, o que se alterou é que entretanto se instituiu uma “sopa dos pobres” a fingir de serviço público — é a visão liberal de socialistas e sociais-democratas, mesmo de outros que não ultrapassam a ideia de uma “área de actividade”, não compreendendo que as artes, como a língua, não são sectores, são respiração, estão em todas as partes do corpo social e dentro, nos modos de subjectivação individuais e comunitários. Por todo o lado e dentro das pessoas, em todos os exteriores e nos interiores, no consciente e no inconsciente colectivo, na vigília e no sonho, na lucidez e na alucinação, a arte lê e é lida e nesse nexo vive e dá vida, é vital — sem ela o falanstério ocupa tudo, a vida não passa de uma tropa económico-contabilística.

Ao contrário das outras formas de comunicação, a arte envenena a cidade daquilo que não a destrói e é pura energia de um vitalismo potencial de existir, intensidade da nossa própria existência de humanos, de criaturas que exercitam a subjectividade em busca de uma singularidade identitária que está sempre em fuga, indivíduos e cidadãos.

Mesmo as rosas mais desesperadas, os caminhos mais infernais, refazem artisticamente um real que é sempre violento e anti-arte para o desmontar e no lugar dele criar outro que existe no pulsar da fruição — criar fruir criar é um ciclo possível como vida. A arte pode ser essa vida outra contra a vida que o capitalismo estruturou como o seu real.

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