Suspeita de fraude na venda de pernil à Venezuela por empresa ligada a Mário Lino

Negócio entre uma empresa portuguesa e o Estado venezuelano terá lesado o erário público em sete milhões. DCIAP investiga suspeitas de fraude fiscal, lavagem de dinheiro e corrupção no comércio internacional. Ex-ministro não é suspeito nem foi ouvido no inquérito.

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Rui Gaudêncio

A Polícia Judiciária e o fisco estão a investigar um esquema de fuga aos impostos por parte de uma empresa portuguesa que vendeu toneladas de carne a uma empresa pública da Venezuela, onde o pernil de porco é uma das tradições à mesa no Natal. Em causa está a Iguarivarius, sociedade do sector agro-alimentar da qual o ex-ministro Mário Lino é actualmente consultor, e da qual já foi chairman (presidente não executivo).

O antigo governante não é arguido na Operação Navidad, assim foi baptizado este inquérito dirigido pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).

As autoridades investigam suspeitas de fraude fiscal qualificada, lavagem de dinheiro e corrupção no comércio internacional privado, calculando que o Estado português foi defraudado em mais de sete milhões de euros em IRC e IRS.

Os investigadores têm fortes indícios de que os lucros conseguidos com o negócio na Venezuela não foram totalmente declarados ao fisco português e que os arguidos receberam comissões que terão canalizado para sociedades offshore, com o objectivo de escapar à tributação em Portugal.

Na mira do Ministério Público estão vários contratos celebrados entre 2013 e 2016 que têm um valor superior a 60 milhões de euros, refere uma nota da autoridade tributária. No período em causa, o ex-ministro das Obras Públicas de José Sócrates presidia ao conselho de administração da Iguarivarius na qualidade de não executivo, empresa na qual já estava desde Janeiro de 2011. A sociedade actuava no ramo do comércio de produtos alimentares e, nesse ano, passou também a incluir no seu objecto a “consultoria de gestão”.

A Iguarivarius foi uma das empresas com quem Caracas assinou contratos em Junho de 2013 durante a primeira visita oficial a Lisboa do Presidente Nicolas Maduro, no encerramento da 8.ª comissão mista de acompanhamento bilateral, conseguindo então um acordo de venda de 4000 toneladas de pernil congelado. Já antes o relacionamento institucional do Estado português com a Venezuela conhecera um impulso, durante os executivos de Sócrates; Mário Lino chegou a representar Portugal em Caracas em 2008, onde se encontrou com o então presidente Hugo Chávez — segundo uma notícia da TVI24 dessa altura, entre os temas da visita estiveram os acordos já assinados nos sectores da alimentação, obras públicas, construção naval e saúde.

Contactado telefonicamente pelo PÚBLICO esta tarde, Mário Lino frisou que não tinha funções executivas na Iguarivarius, empresa do grupo ao qual — explicou — continua ligado mas na qualidade de consultor. Foi há um ano, em Dezembro de 2018, que o antigo governante deixou o conselho de administração da sociedade, com negócios na Venezuela e noutros países.

Questionado sobre se alguma vez ouviu falar de fuga ao fisco por parte do grupo do qual era chairman, o ex-ministro assegurou que não, tendo acrescentado que, estando a investigação ainda a decorrer, não existem ainda senão suspeitas. Neste momento, o ex-ministro de Sócrates não é suspeito, nem foi ouvido pelo DCIAP.

Cinco arguidos

Foram constituídos cinco arguidos — três empresas (todas do mesmo universo empresarial) e duas pessoas (com idades entre os 48 e os 57 anos). Entre os arguidos “não se inclui Mário Lino”, de 79 anos, especificou o DCIAP numa nota publicada no seu site.

Durante o dia de quarta-feira, houve dez buscas domiciliárias e não domiciliárias na grande Lisboa e no grande Porto. Foi detida uma pessoa, mas “por factos (detenção de arma de proibida) sem relação com o objecto deste inquérito e que, como tal, deram origem a um processo autónomo”, esclareceu o DCIAP.

Segundo a PJ, há “fortes suspeitas de que os elevados proventos obtidos com negócio não tenham sido integralmente declarados fiscalmente, e de que os arguidos tenham recebido comissões avultadas através de sociedades offshore, lesando o Estado português em milhões de euros”.

Essas sociedades — suspeitas de serem fictícias — terão alegadamente sido criadas para intermediarem o negócio do pernil entre a Iguarivarius e os venezuelanos, serviço pelo qual cobrariam uma comissão, o que justificaria a saída do dinheiro do grupo. Mas na realidade os seus beneficiários finais seriam os administradores do grupo português, que depois não declaravam os rendimentos daí provenientes em sede de IRS. A investigação não está, porém, fechada, razão pela qual é possível que ainda sejam constituídos mais arguidos. Também é possível que venha a ser estendido o período sob investigação, uma vez que tanto em 2017 como em 2018 estas empresas continuaram a vender pernil à Venezuela. Tudo depende do que for encontrado na documentação apreendida. 

​A Iguarivarius faz parte do Grupovarius, grupo que tem negócios em ramos de actividade muito distintos: da exportação de produtos alimentares à consultoria de gestão, passando pelos sistemas e tecnologias de informação e pela organização de eventos com carros topo de gama (veículos Ferrari, Porche e Lamborghini, por exemplo).

Os nomes das empresas são parecidos e têm sempre a terminação “varius”, antecedida de um termo que ilustra a actividade desenvolvida por cada uma — além da Iguarivarius (alimentação), há a Agrovarius (agricultura), a Industrivarius (indústria de fabrico de tintas e vernizes), a Metalovarius (metalomecânica e construção civil e obras públicas), a Sitvarius (sistemas de informação), Racingvarius (aluguer de veículos) e a Madeinvarius (consultoria e organização de eventos).

Nesta investigação estão envolvidas a Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ e a Direcção de Serviços de Investigação da Fraude e de Acções Especiais da Autoridade Tributária (DSIFAE).

Segundo o programa Sexta às Nove da RTP noticiou no passado, o rápido enriquecimento deste grupo fez o Ministério Público desencadear uma investigação no final de 2016. Em causa estariam não apenas os crimes de evasão fiscal e branqueamento de capitais como também a suposta exportação de carne espanhola com rótulo português. 

Maduro apontou dedo a Portugal

O nome da operação judicial conhecida hoje, Navidad, é uma referência à venda do típico pernil de porco a Caracas na época do Natal, uma tradição que há dois anos ficou marcada por um percalço entre Portugal e a Venezuela porque a carne não chegou a tempo das festividades.

Em 2017, a falta de pernil naquele ano, a somar a uma crise geral marcada pela escassez de alimentos, água, combustível e gás, fez crescer o descontentamento e o Presidente Nicolás Maduro acusou Portugal de fazer uma sabotagem da entrega de toneladas de carne. Uma das fornecedoras explicaria nessa altura que a Venezuela estava então com pagamentos em atraso às empresas portuguesas na ordem dos 40 milhões de euros.

A declaração de Maduro, alegando que a Venezuela estava a ser sabotada “por um país em particular” — Portugal — levou na altura o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, a tomar posição, para negar ter intervindo para haver um boicote. “Evidentemente não há aqui nenhuma interferência política porque o Governo português não interfere no pernil de porco”, afirmou então Santo Silva.

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