Um(a)Ventura na democracia

Confesso que me assustam os muros que se criam para defender o Estado dos que juraram defendê-lo com a sua própria vida. Mas não é desses que devemos ter medo que subam a escadaria, é de uns outros que, como se vê, já se instalaram lá dentro.

O mundo anda perigoso e, todos o sabemos, mal frequentado. Os sinais que vamos tendo aqui e ali não nos podem fazer descansar. Há sintomas que antecedem a infecção generalizada que é preciso travar enquanto é tempo, porque as bactérias do populismo, quando encontram as condições ideais, multiplicam-se rapidamente.

Primeiro surgem sorrateiramente, utilizando hospedeiros que lhes alimentam o ego, para logo abandonarem quando este já não serve a sua voracidade pelo mediatismo. Quando acossados, toda a sua aparência de civilidade se esboroa, e logo revelam a sua verdadeira face. Tornam-se arruaceiros, aparecem sempre com grande estrilho e barulho, vivem do brilho das luzes e da atenção dos media. São um(a)ventura na democracia, a mesma democracia que tanto querem controlar.

É assim um populista! Astuto, perspicaz e sempre atento às oportunidades que possam surgir para se colar às manifestações e causas dos outros, tantas delas legítimas, conseguindo contaminar com a sua acção a opinião publicada. Quase como o penetra fura-casamentos, que ninguém faz ideia quem é, mas que além de se fazer passar por familiar ou amigo próximo ainda tem a lata de pegar no microfone e fazer o discurso da boda aos noivos.

É assim à direita, mas também à esquerda. Não são muito diferentes, porque os populistas manipulam a opinião pública de qualquer um dos lados, e o seu objectivo é apenas um: aparecer, ser falado e ganhar poder. Não estão ali para defender ninguém, apenas para alimentar o seu enorme ego, e por isso podem defender tudo e o seu contrário.

Depois das últimas eleições legislativas, o fenómeno multiplicou-se. Durante a campanha, a comunicação social apontou baterias a André Ventura, que muito aproveitou a promoção que os media lhe deram, deixando espaço a Joacine Katar Moreira que surgia como uma esperança, sem que se percebesse muito bem porquê. Não durou mais do que uma semana, depois de tomar posse na Assembleia da República, para revelar-se por inteiro. Não há populismo bom e mau. O rótulo de esquerda não qualifica melhor um populista. E já todos percebemos que a Joacine, que se proclamava a voz no Parlamento da esquerda antifascista e anti-racista e do feminismo radical, não passa de uma populista com uma agenda própria comandada pelo seu imenso ego, escondido nas suas aparentes e auto-identificadas fragilidades.

Um e outro representam um perigo à nossa democracia, à forma como encaramos os nossos problemas, apresentando sempre soluções néscias e simplistas para assuntos que sabemos complexos. Tocam as cordas das emoções mais elementares da sociedade manipulam a opinião dos que vivem nos limites e no limiar da tolerância, incendeiam ódios, atiçam as hostes contra o sistema do qual eles mesmos se alimentam.

A última semana foi mais uma oportunidade de revelação destes protagonistas. Uma, que votou em sentido completamente oposto ao tanto que propalou em campanha, demonstrando que não há ali qualquer responsabilidade política nem lealdade partidária. Tornou-se a dona dos votos que o partido cativou, e ainda cuspiu no prato em que lhe serviram o protagonismo. O outro colou-se à legítima manifestação da PSP e GNR, transformando-a pela sua voracidade mediática num acontecimento que, por contaminação, logo surgiu colado à extrema-direita ou, pior ainda, ao movimento de supremacia branca.

Este último exemplo revela também o populismo dos media que em tudo também vêem oportunidade para o sensacionalismo que explora a ignorância. No símbolo de ‘Tolerância Zero’ que se representava pelos dedos das mãos em sinal de ‘OK’ conseguiram desenterrar o fantasma do racismo mais ignóbil. Conseguiram na mesma semana baralhar e dar de novo, alternado entre o Ventura e a Joacine, entre a defesa da autoridade e do autoritarismo e a supremacia branca, entre o racismo e o radicalismo. Confesso que me assusta este estado mediático, que alimenta os populistas e nos coloca permanentemente no limbo da racionalidade e da razoabilidade. 

Isto, e os muros que se criam para defender o Estado dos que juraram defendê-lo com a sua própria vida. Não é desses que devemos ter medo que subam a escadaria, é de uns outros que, como se vê, já se instalaram lá dentro.

Os populismos nascem, crescem e ganham espaço, quando o sistema não responde, tarda em responder ou prova não ter maturidade para perceber o que está em causa.

Que se escancarem janelas à reflexão profunda por parte dos partidos políticos fundadores e defensores da democracia, fechados sobre si mesmos como ostras, ignorando os efeitos perversos da abstenção. 

Não ouvem, não vêem, não falam, não mudam, vivem em agonia conformada numa espiral autista e de terror, à mercê dos anseios da manutenção e salvaguarda do poder. Contentam-se com o pouco e o suficiente, com medo de não haver espaço para todos, atrapalham-se e matam-se, com medo de não haver espaço para todos, calam-se e mandam-se calar, com medo de não haver espaço para todos. Afinal... há espaço, tanto espaço, muito espaço vazio para ocupar! 

Acordemos! 

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