Falar do avesso faz bem

Num universo em que os apelos ao consumo, levados ao paroxismo nesta data, são encarados pela esmagadora maioria da sociedade como uma “normalidade” que já nem suscita interrogações, é bom que haja quem fale do avesso.

O ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, está talhado para ser um alvo da contestação política e popular. Podem ser furos em Aljezur, lítio em Trás-os-Montes, falta de água no Tejo, olivais no Alentejo, petróleo no Algarve... A exploração de recursos naturais é cada vez mais um tema difícil de equilibrar com a agenda da defesa ambiental.

Apesar de um dia ter dito, em tom de campanha eleitoral, que era “fácil ser ministro depois de Cristas”, a verdade é que a pressão provocada pela urgência das alterações climáticas transformou uma pasta simpática num ninho de problemas. Até porque, como se percebe, estamos perante um problema civilizacional que abala hábitos arreigados, que muito poucos estão disponíveis para abandonar.

E, assim, um ministro que já esteve na polémica da retirada de carne das ementas da Universidade de Coimbra, ou na escolha ou não de carros movidos a gasóleo, chegou anteontem à questão crítica do consumismo desenfreado que, nas suas palavras, tem no dia de amanhã, o da Black Friday, o “expoente máximo e negativo de uma sociedade capitalista”.

Os ouvidos, pouco habituados a escutar acusações a este sistema económico que não provenham dos extremos do espectro político, poderão estranhar que um responsável governamental tenha dito estas palavras. Mas quanto mais omnipresente se torna a ideia de que podemos aplicar ao capitalismo aquilo que um dia Churchill disse sobre a democracia –​ parafraseando, seria “o capitalismo é o pior dos sistemas económicos, com a excepção de todos os demais” –, mais necessário é conservar um espírito crítico que nos permita ir melhorando aquilo que se nos apresenta como inevitável.

Num universo em que os apelos ao consumo, levados ao paroxismo nesta data, são encarados pela esmagadora maioria da sociedade como uma “normalidade” que já nem suscita interrogações, é bom que haja quem fale do avesso. Quem nos lembre que antes de consumidores temos de ser cidadãos, nas escolhas que fazemos, mas especialmente no ritmo a que consumimos. Mesmo que o ministro tenha ficado aquém nos comentários que fez sobre o consumismo, é preciso entender que ideias como a dos bens descartáveis, da obsolescência programada, do “mais vale comprar novo do que mandar arranjar” ou de que temos de mudar de telemóvel ou de roupa a cada nova estação, são perversões para as quais não há planeta que aguente e com as quais uma sociedade racional não deve conviver.

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