Afinal, as peças de Molière foram mesmo escritas por Molière (com toda a probabilidade)

Um estudo publicado por dois investigadores franceses, assente na análise computacional das suas obras, contradiz a teoria, nascida em 1919 e amplificada nos anos 2000, de que o nome maior da dramaturgia francesa não foi o autor das obras que assinou. Fim da polémica? Não necessariamente

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Molière, retratado por Nicolas Mignard, em 1658, encarnando César em A Morte de Pompeia, tragédia de Pierre Corneille DR

A polémica teve início num ano definido. Em 1919, o poeta e romancista francês Pierre Louÿs, amigo e colaborador de Debussy, amante da cultura grega clássica, cultor do erotismo, defendeu que as obras de Molière não eram criação do autor e actor setecentista e nome maior da dramaturgia francesa, mas sim do poeta, e também dramaturgo, Pierre Corneille. A polémica ganhou novo fôlego já este século, com a publicação de alguns estudos que apontavam a teoria como certa. Agora, um novo estudo publicado por dois investigadores, Florian Cafiero e Jean-Baptiste Camps, na revista Science Advances, pretende encerrar o fim da antiga discussão. Foi mesmo Molière (ou melhor, não foi Corneille, nem nenhum dos mais célebres autores franceses seus contemporâneos). Assim o diz a análise computacional das suas obras.

Para Pierre Louÿs, era suspeito o desabrochar criativo tardio de Molière, era suspeito que alguém nascido num contexto distante de uma educação refinada, destinado por tradição familiar, contra a qual se rebelou, a ser mero mercador (fornecedor do rei, é certo, mero mercador, ainda assim), pudesse ser o autor de obras-primas como Tartufo ou O Misantropo. Para Pierre Louÿs, a suposta incongruência tinha explicação óbvia: o verdadeiro autor não era o homem nascido Jean-Baptiste Poquelin em Paris, em 1622, antes Pierre Corneille, outro grande nome do teatro francês, nascido em Rouen, em 1606 — e que Louÿs considerava, a par de Victor Hugo e de Pierre de Ronsard, o maior nome das Letras francesas.

Nos anos 2000, muito depois da morte em 1925 de Louÿs, um estudo assinado por Cyril e Dominique Labbé, no qual os investigadores aferiram a distância intertextual entre os escritos de Corneille e Molière, concluía que dezasseis a dezoito das comédias assinadas por Molière seriam, afinal, obra do seu contemporâneo. Levantaram-se críticas à fiabilidade do estudo, considerado redutor por assentar unicamente na recorrência de unidades semânticas, e uniram-se os que acreditavam na sua veracidade quando um outro estudo, obra da linguista russa Eléna Rodionova, chegou às mesmas conclusões que o dos Labbé.

Uma ideia atractiva

George Forestier, autor da biografia Molière, publicada no ano passado pela Gallimard, recuou ao início de toda a polémica para dar conta da sua desconfiança. Afirmava que, em 1919, Pierre Louÿs vivia o ocaso da sua carreira, quase esquecido e abandonado a uma vida de alcoolismo. “De repente aparece um livro de um professor do Collège de France, chamado Abel Lefranc, famoso à época, intitulado Sous la Masque de William Shakespeare: William Stanley, VIe Comte de Derby [Debaixo da Máscara de William Shakespeare: William Stanley, Sexto Conde de Derby]”, onde era defendido que toda a obra de Shakespeare saíra da pena do nobre em título. Seis meses depois, recordou Forestier, citado pela France Culture, Pierre Louÿs publica na revista Comedia o artigo fundador da polémica, Molière é uma obra-prima de Corneille.

O estudo publicado esta quinta-feira na revista científica Science Advances, sob o título Why Molière Most Likely did Write his Plays [Porque é que, com toda a probabilidade, Molière escreveu realmente as suas peças], pretende pôr fim à centenária polémica. Os seus autores, Florian Cafiero, da Université de Paris, e Jean-Baptiste Camps, da Université Paris Sciences et Lettres, iniciaram a investigação como mero acto de sedução: tinham o objectivo de atrair estudantes para o seu curso de filologia computacional e a questão da autoria em Molière pareceu-lhes suficientemente atractiva. Em relação a estudos anteriores, alargaram o âmbito da análise, não só quanto ao uso de formas gramaticais e estruturas de rimas, por exemplo, mas indo além de Corneille — além dele, confrontaram os textos assinados por Molière com os de outros destacados autores seus contemporâneos, como Paul Scarron, Jean Rotrou ou o irmão de Corneille, Thomas.

Análise algorítmica

Segundo os autores, os resultados são inequívocos. Consideraram a hipótese de Corneille ter trabalhado sobre rascunhos fornecidos por Molière, mas afirmam que “todas as peças assinadas por Molière pertencem ao mesmo grupo, muito distinto das peças de Corneille, qualquer que seja a característica analisada”. Testaram depois a possibilidade de Molière não ter sequer sido o autor de nenhuma palavra, de nenhum verso, inscrito nas obras que assinou, mas tal surge também como impossibilidade. A análise algorítmica revelou os seus escritos como totalmente distintos das obras dos restantes autores analisados. “Os autores surgem claramente separados e as atribuições correspondem às assinaturas em quase 95% dos casos”. Curiosamente, Pierre Corneille nunca aparece como o mais próximo de Molière em nenhum dos itens avaliados. Fim da polémica? Não necessariamente.

Para lhe pôr fim definitivo, afirmam Cafiero e Camps, seria necessário encontrar uma obra comprovadamente manuscrita pelo próprio Molière. Enquanto isso não acontecer, há sempre a possibilidade de alguém propor que não é ele realmente o autor. Excluída a possibilidade de Tartufo ser obra dos seus mais célebres contemporâneos, haverá autores menores do período prontos para serem resgatados para uma glória póstuma por novos polemistas.

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