Que violência?

A violência contra as mulheres está na culpa com que nos carregam (e nos carregamos), simplesmente, por sermos mulheres.

Porque falar da erradicação da violência contra as mulheres é, infelizmente, falar de muitas realidades, tão distintas todas, no mundo e nos dias de hoje.

É, desde logo, falar da violência da intimidade, essa que ocorre entre quatro paredes (ou que deriva de quatro paredes) e que é a violência que espanca, ou a violência que humilha, ou a violência que isola, ou a violência que priva de dinheiro, ou a violência que viola o sexo e viola a alma.

Esta é a violência que mata e faz notícia e faz estatísticas, ou a que vai matando lentamente, em mortes-vidas anónimas, caladas e invisíveis.

Mortes-vidas que não chegam às notícias, nem entram nas estatísticas, mas que são, ainda, a marca do quotidiano de tantas e tantas mulheres, jovens algumas, maduras outras, velhas, outras ainda.

Mas a violência contra as mulheres está muito para além das quatro paredes, muito para além da família, ou das relações que se julgavam amorosas.

A violência contra as mulheres está nos salários mais baixos, está na “secundarização” do valor do seu trabalho, está na maior precariedade e no maior desemprego, fenómenos que têm, todos eles, um perfil feminino.

A violência contra as mulheres está na exploração, que é a venda do seu corpo e da sua sexualidade e a conversão desta exploração em “trabalho”, no pressuposto de que esta conversão é uma forma de legitimação do direito (e da liberdade) das mulheres ao uso do seu corpo e da sua sexualidade.

A questão é que são outros quem usa (e abusa) desse corpo e dessa sexualidade.

E a questão, maior ainda, é que muitas mulheres – e particularmente muitas destas mulheres – não provêm de contextos sociais, culturais e económicos que lhes permitam ser “donas” desses corpos e dessa sexualidade, que se expõe na infâmia das montras, ou que se “salda” em “happy-hours” ou em bordeis “low-cost”.

Porque para as mulheres terem noção de que são “donas” do seu corpo, da sua sexualidade e dos seus destinos, é preciso que tenham acesso à educação e que lhes seja concedido um mínimo (pelo menos um mínimo) de dignidade.

E a verdade é que, para a maioria das mulheres do mundo, isso ainda não é uma verdade.

E não o é, não apenas em geografias mais remotas. Não o é, também, nas periferias e nas franjas das nossas geografias, as do mundo que se diz “desenvolvido”.

Essas periferias e essas franjas, em que as mulheres são deixadas para trás, carregando aos ombros os filhos que não fizeram sozinhas, e acumulando dois e três empregos, mal-pagos todos, esticando as horas dos dias, apenas na tentativa de que a pobreza não se converta em fome.

A violência contra as mulheres está na culpa com que nos carregam (e nos carregamos), simplesmente, por sermos mulheres.

A culpa de tantos pecados tão pouco originais: a culpa por sermos mães e termos um emprego; a culpa por não sermos mães; a culpa por não termos emprego; a culpa por nos vestirmos demasiado; a culpa por estarmos demasiado despidas; a culpa por termos voz; a culpa por calarmos; a culpa por não cuidarmos; a culpa porque nos anulamos ao cuidar; a culpa por suportarmos; a culpa por já não suportarmos mais; a culpa por não viver na culpa – coisa que, afinal, não se desculpa a uma mulher…

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