Livre: de pontapé em pontapé

O problema é que a Joacine veio para ficar no Parlamento nacional. Com ou sem Livre e provavelmente durante os quatro anos para os quais foi eleita. Um pontapé na política, portanto.

O partido de Rui Tavares dizia que vinha dar um pontapé no estaminé em Portugal. Desde a eleição da deputada luso-guineense, Joacine Katar Moreira, que se assistiu à extrapolação deste hashtag das redes sociais do Livre para o para o espaço público.

O primeiro grande pontapé foi dado ainda antes da eleição nacional quando a deputada se referiu à sua gaguez com a seguinte frase: “eu gaguejo quando falo, não quando penso. O perigo na assembleia é os indivíduos que gaguejam quando pensam.” Parece bonita, foi aplaudida por muitos, mas além de pouco verdadeira, é demagógica.

Através dela, ignorou-se também a questão relevante: como se poderia ser eficaz no debate político quando esta era a única voz do partido no Parlamento nacional?

O segundo pontapé começou realmente por ser no estaminé (e por aí se ficaram) com a própria eleição da Joacine. Luso-guineense, negra e feminista. Tudo certo e relevante se a agenda política não ficasse refém desta identificação. E se a gaguez, conforme revisto, além de problemática para o futuro do partido, não se fizesse acompanhar da radicalização no discurso.

Em defesa da sua identidade, a deputada do Livre recorreu ao mesmo primarismo que o racismo miserabilista de alguns do lado oposto. O constante revisionismo histórico que ainda ontem levou a que apelasse à necessidade de uma esquerda anticolonial (!) num comunicado à imprensa, é mais um exemplo. Não sei se existirá algum antiportuguesismo nela como muitos acusam, mas humildade na postura sempre faltou. Quem assistiu a Barack Obama ser eleito e depois governar durante oito anos num dos países mais racistas do mundo percebe o que é e o que não merece ser levado a sério. Um evitou sempre a questão da cor da sua pele como arma política, outra não fez outra coisa. (Mesmo quando o pontapé que interessava já estava dado.)   

O terceiro pontapé é aquele momento da saia do assessor no primeiro dia parlamentar da deputada. Um hino ao populismo de tão descarado que foi o propósito de dar nas vistas e fazer notícia a qualquer custo. É também difícil separar desta encenação a identidade feminista da Joacine. Ou a infantilização do discurso quando justifica a subida do ordenado mínimo com o amor: um momento de política light para mais tarde recordar.

Por fim, este voto de abstenção num tema definidor do posicionamento da própria esquerda: o caso ainda está mal contado e envolto nalgumas contradições, mas tudo me leva a crer que a decisão não se suporta apenas neste último pontapé contra a génese do partido.

Rui Tavares cometeu ontem o erro de ceder ao populismo fácil para crescer eleitoralmente e com isso abandonou a postura mais moderada do Livre: um partido de esquerda europeia empenhado em causas, para se tornar num outro de polémicas e fait-divers. Elegeu uma deputada, mas perdeu a sua identidade. Extremou-se e com isso veio o voto fácil. Trocou a liberdade pela libertinagem. Feito o balanço, duvido que tenha havido qualquer verdadeiro pontapé no estaminé nacional, mas é louvável que hoje se dê um outro no discurso fácil interno. Por mais votos que isso custe amanhã. Como é louvável querer manter a génese do partido que criou.

O problema é que a Joacine veio para ficar no Parlamento nacional. Com ou sem Livre e provavelmente durante os quatro anos para os quais foi eleita. Um pontapé na política, portanto.  

  

          

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