Construção de ponte-açude ameaça peixes migradores na Ria de Aveiro

Instalação de estrutura no troço final do Vouga pretende controlar cheias e travar salinização, mas pode ter causar danos colaterais. APA está a avaliar.

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Paulo Pimenta

O início da construção da ponte-açude do Rio Novo do Príncipe, o troço final do Vouga que vai desaguar na Ria de Aveiro, está apenas dependente de uma licença ambiental. De resto, a obra da Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro (CIRA) até já foi adjudicada em 2017, por 6,9 milhões. No entanto, apesar ter vários objectivos específicos, como o controlo das cheias no Baixo Vouga Lagunar, regulação do caudal do rio ou impedir o avanço da água salobra, a sua construção pode causar danos colaterais, avisa o professor da Universidade de Évora e investigador do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, Pedro Raposo de Almeida. A ponte-açude “ameaça a existência de peixes migradores na Ria de Aveiro e a pesca que depende deles”, afirma, sublinhando o potencial impacto na dinâmica do estuário.

O especialista em peixes migradores está apreensivo e receia que a utilização de comportas impeça os peixes diádromos (ou seja, que migram da água salgada para a doce ou vice-versa) de passarem aquele obstáculo e de se reproduzirem.

Está previsto que a estrutura a instalar no rio Novo do Príncipe tenha 10 metros de comprimento por 6,8 metros de altura e que, na época de maior actividade dos peixes migradores, entre Janeiro e Abril, “com uma frequência e duração a determinar”, as águas dos dois lados comuniquem. “Tal implicará a abertura periódica das comportas do açude, a qual deverá ocorrer na vazante, para evitar a penetração salina”, lê-se na memória descritiva do projecto a que o PÚBLICO teve acesso.

Apesar desta medida, Pedro Raposo de Almeida explica que não é assim tão simples. “Do ponto de vista hidráulico, [esta situação] gera uma quantidade de energia que a maior parte dos peixes, sobretudo os mais pequenos, não tem a mínima hipótese de vencer”, explica. E prossegue: “os animais, para pouparem energia, deslocam-se com a maré, numa massa de água com determinadas características como temperatura ou salinidade. Assim, é envolvido por um ambiente que não lhe é hostil”. Se, pelo contrário, o animal “andar a nadar de um lado para o outro, gasta imensa energia”, além de ficar vulnerável a “variações de salinidade que podem ser um bocadinho agressivas”.

Acresce que, ao construir-se uma estrutura tão perto do estuário, os peixes migradores ficam sem qualquer margem de acesso a água doce onde se possam reproduzir. O investigador dá como exemplos os casos distintos dos rios Douro e do Mondego: com a construção da barragem de Crestuma-Lever, deixou de haver sável no Douro e a lampreia escasseia; já no Mondego, antes de 2011, ano em que foi construída a passagem para peixes no açude de Coimbra, os animais ainda tinham um troço de cerca de 15 quilómetros para se reproduzirem em água doce.

Raposo de Almeida recorda que a zona onde a CIRA quer implantar o ponte-açude faz parte da Rede Natura 2000, classificação que tem por objectivo conservar e preservar habitats. O PÚBLICO tentou obter respostas por parte do presidente da CIRA, Ribau Esteves, que é também presidente da Câmara Municipal de Aveiro, mas, até ao fecho da edição, tal não foi possível.

Além do possível impacto no ecossistema, há também um impacto económico associado. “A ria é importantíssima para a pesca artesanal”, afirma o investigador, uma vez que várias das espécies têm também “relevância do ponto de vista económico”. Assim, o projecto do rio Novo do Príncipe “deve ser revisto de forma contemplar um dispositivo de passagem para peixes apropriado” para as espécies migradoras existentes no Vouga, “designadamente, a lampreia-marinha, o sável, a truta-marisca, o muge, e a enguia”, defende Raposo de Almeida.

Obra antiga

A ponte-açude é a obra principal de um projecto maior com o nome Infra-estruturas Hidráulicas do Sistema de Defesa Contra Cheias e Marés no Rio Velho e Rio Novo do Príncipe. Mas a estrutura já constava no plano de requalificação da Pista de Remo do Rio Novo do Príncipe, em 2002, que nunca chegou a avançar.

A actual também tarda. Apesar de ter sido adjudicada há cerca de dois anos, a obra de 6,9 milhões de euros ainda não arrancou. Em Maio, citado pela Agência Lusa, Ribau Esteves justificava o atraso na empreitada: “O que se passa é que há instituições que mudam de opinião. O que aconteceu foi que anteriormente era aceite a Declaração de Impacto Ambiental (DIA) do projecto da pista de remo, de que a ponte-açude era uma das peças, e que veio a ser abandonado e a entidade decidiu alterar a sua posição de base”.

A DIA a que o autarca se refere e que sustenta a instalação da ponte-açude no rio Novo do Príncipe é de 2003. Este é mais um ponto que, na opinião de Raposo de Almeida, devia ser repensado, até porque, entretanto, houve alterações na dinâmica do rio, como a entrada em funcionamento do sistema de aproveitamento hidro-eléctrico Ribeiradio-Ermida, bem montante. “Mesmo que [a DIA] esteja válida, o mínimo que há a fazer é rever o estudo de impacte ambiental e actualizá-lo”, aponta.

Questionada pelo PÚBLICO, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) explica por escrito que o projecto de execução e o respectivo relatório de conformidade ambiental foram submetidos a procedimentos de “verificação da conformidade ambiental” em duas fases. Uma em 2004, relativa ao projecto de execução da ponte do Outeiro, outra em 2008, referente ao projecto de Infra-estruturas Hidráulicas da Pista Olímpica de Remo, sendo que a entidade refere que, nos dois casos, houve um período de consulta pública. “Dado que uma das componentes do projecto foi efectivamente concretizada (ponte do Outeiro), a referida decisão mantém-se válida”, justifica a APA.

Relativamente aos desenvolvimentos recentes, a APA esclarece também que está a avaliar, em articulação com outras entidades, uma proposta apresentada pela CIRA “de um projecto de execução ajustado”. O objectivo é “aferir se o mesmo permanece enquadrado pelas decisões ambientais” anteriores, sendo que a decisão deverá ser emitida “em breve”. A APA sublinha também que “os aspectos relacionados com a migração das espécies estão a ser ponderados na referida apreciação”.

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