Mais um prego no caixão do neoliberalismo

Que os CEOs americanos se tenham dado conta da repulsa moral que algumas das suas práticas têm gerado e que queiram fazer alguma coisa para lhes pôr fim é, por si só, motivo de regozijo.

O professor João César das Neves, que é certamente muito mais religioso do que eu, diz num artigo relativamente recente, citando Rodney Stark, que o capitalismo foi descoberto "por monges católicos que, apesar de desprezarem as coisas terrenas, procuraram assegurar a boa economia dos respetivos centros monásticos" (Avaliação Ética do Capitalismo, Edições 70, 2017). Não tenho competência para contestar a tese, mas é reconfortante saber que na génese do sistema estiveram actores da mais elevada craveira moral. 

É consensual que o capitalismo enquanto sistema social apenas surgiu nos finais do século XVIII como resultado da confluência de mercados, ciência e tecnologia. Mas nunca foi fácil convencer a maioria sobre as vantagens de trabalhar ordeiramente para a minoria detentora do capital. As religiões ajudaram um tanto, mas desde muito cedo o capitalismo liberal foi confrontado com movimentos revolucionários que, no século XIX, apenas foram contidos por uma combinação complexa de repressão e cooptação, incluindo reformas sociais e partilha de poder. 

Por alguma razão Max Weber, o histórico sociólogo do capitalismo, deu à sua obra maior, de 1905, o título A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Citando Benjamin Franklin, Weber dizia: "Nada contribui tanto para que um jovem vença na vida como a rectidão em todos os seus negócios.” Para Weber, a falta de moral e a avidez eram características das sociedades pré-capitalistas. 

O capitalismo do Estado democrático e social das três décadas subsequentes à II Guerra Mundial era, por regra, fundado num robusto contrato social que, num clima de crescimento e paz social, permitia a igualdade de oportunidades e a repartição relativamente equitativa de vantagens. Mas nos anos 70 o compromisso começou a desintegrar-se, gradual e imperceptivelmente no início, e depois abertamente através de sucessivas crises que desaguaram no neoliberalismo. Foi o fim do modelo do gestor ético

Em seu lugar surgiu o modelo do mercado ético. Para os pensadores neoliberais, a ética é apenas um limite do sistema. O objectivo do gestor é gerar o maior lucro possível desde que não viole a lei. No final, o mercado se encarregará de produzir resultados éticos. 

Como sabemos, a ética do mercado deu naquilo que a crise de 2008 veio tornar patente: um nível de desigualdade entre os rendimentos do trabalho e os do capital apenas visto antes da II Guerra Mundial; dívida pública e privada cada vez mais difícil de gerir; estagnação económica; corrupção. A situação é tão má que até um grupo de principais beneficiários da ordem neoliberal, os CEOs das maiores empresas americanas, decidiu intervir.

No passado mês de Agosto, a poderosa Business Rountable, uma associação que agrega a nata dos executivos norte-americanos, fez publicar a sua Declaração sobre o Propósito da Empresa. 181 CEOs, entre os quais se destacam os líderes da Amazon, Apple, JP Morgan, Microsoft e outros de igual nomeada, afirmaram, preto no branco, que as empresas têm responsabilidades para com "todos" (destacado no original) os interessados (stakeholders). Segundo o compromisso que subscreveram, a criação de valor accionista – "de logo prazo", sublinhe-se – vem depois dos interesses dos clientes, empregados, fornecedores e comunidade. É a derrota da primazia accionista e da maximização do seu lucro, um dos credos mais tenazmente defendidos pela ideologia neoliberal. 

Há quem desconfie de tanta fartura, vinda de um dos grupos profissionais que mais tem beneficiado com os níveis históricos da desigualdade que se instalaram na sociedade e nas empresas. Mas os CEOs são quem mais tem a perder com as propostas verdadeiramente radicais que, neste domínio, a esquerda (Jeremy Corbyn, Elisabeth Warren, etc.) tem vindo a apresentar em resposta ao avanço do populismo de direita. 

A rejeição social das elites, aliada ao hedonismo prevalente, constitui uma ameaça à disciplina produtiva, sendo certo que a crise de 2008 tornou claro que o sistema já não consegue gerar a prosperidade e igualdade de oportunidades que a maioria exige. Que os CEOs americanos se tenham dado conta da repulsa moral que algumas das suas práticas têm gerado e que queiram fazer alguma coisa para lhes pôr fim é, por si só, motivo de regozijo. Regozijo que é tanto mais justificado quanto é certo que, levado à letra, o manifesto da Business Roundtable fere de morte um dos mais importantes postulados da estafada ideologia neoliberal: a primazia accionista.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários