Portugal disfuncional

Não foi por acaso que o chamado “movimento zero” – que está muito longe de ser uma novidade no seio das forças policiais – tomou literalmente conta da última manifestação.

A manifestação das forças de segurança na última quinta-feira e a sua “captura” (simbólica e política) pela extrema-direita, representada pelo deputado André Ventura, foi o caso mais recente e aparatoso das “disfuncionalidades” a que temos assistido na sociedade portuguesa – sobretudo na relação entre as instituições públicas e o Governo. Por coincidência, e logo no mesmo dia, noticiava-se que as dívidas em atraso dos hospitais se avizinhavam dos 700 milhões de euros enquanto o panorama do sector público da saúde reflectia uma precariedade crescente e quase insustentável.

Ora, também na quinta-feira a manchete do PÚBLICO avançava que “os 630 mil associados do Montepio podem vir a ser chamados na reposição dos desequilíbrios de perto de mil milhões. Redução de benefícios, aumento de quotas ou intervenção do Estado são possibilidades”. Sabendo-se o papel que o Montepio tem tido junto de classes menos abonadas – e de que dele têm dependido tradicionalmente para manter as contas em dia –, esta disfuncionalidade anuncia-se muito perigosa. Entretanto, porém, os buracos sistemáticos da Banca que, em última instância, o Estado é chamado a colmatar, voltavam a aparecer ainda há bem pouco tempo como um rasto fatal da herança do BES num dito Novo Banco cedido a um fundo abutre americano.

Curiosamente, apesar da sua alarmante expressão financeira, os dramas bancários parecem ser encarados como uma fatalidade inevitável por parte do Governo, que terá de providenciar verbas para cobrir o vazio. E o hábito instalou-se a tal ponto que alguns administradores da Banca em maiores dificuldades, como o Novo Banco, até parecem instalados num sono tranquilo sob a manta protectora do Estado.

Onde o Estado falta ou ameaça faltar é naqueles sectores que, como a Saúde ou a Educação, são absolutamente decisivos na vida dos cidadãos. Aí, o tradicional recurso às cativações orçamentais para garantir as “contas certas” pode acabar por sobrepor-se às básicas necessidades de sobrevivência dos sectores em questão. Não há volta a dar nos casos de emergência bancária, mas só existem soluções desesperadas de recurso para os dramas da Saúde ou da Educação. Ou também, já agora, para as carências de toda a ordem que afectam perigosamente o funcionamento normal das forças de segurança.

Toda a gente está aparentemente de acordo com esta última evidência: desde a magreza dos salários a deficiências básicas de instalações e equipamento, a PSP e a GNR estão ameaçadas de perder o estatuto que lhes confere a sua dignidade. Só que isto já se arrasta há demasiado tempo, pelo menos o tempo necessário para perceber a vulnerabilidade das forças de segurança aos demónios que as rodeiam, entre os quais a tentação da violência indiscriminada – como acontece em certos bairros problemáticos –, ou a atracção pelo extremismo político (anónimo ou inorgânico) que tende a substituir o sindicalismo tradicional.

Não foi por acaso que o chamado “movimento zero” – que está muito longe de ser uma novidade no seio das forças policiais – tomou literalmente conta da última manifestação, facultando ao deputado Ventura o acesso a uma tribuna improvisada para falar aos manifestantes. Coincidência significativa: o antigo inspector que ilibou os polícias da esquadra de Alfragide no caso de agressão a um grupo de jovens da Cova da Moura acaba de ser promovido pelo ministério respectivo a número dois da Inspecção-Geral da Administração Interna. Infelizmente, não faltam casos que ilustram a nossa condição de país disfuncional.

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